Alice e a moral no país das maravilhas

P. Gonçalo Portocarrero de Almada | Observador 8/8/2015
Leia, vá ao cinema e ao teatro. Mas, se lhe ocorrer que o livro, o filme ou a peça não tem nenhuma moral, lembre-se da advertência da duquesa à Alice: Tudo tem uma moral, mas é preciso dar com ela!
No 150º aniversário da publicação do conhecido livro de Lewis Carroll, aliás Charles Lutwidge Dodgson, e em pleno tempo estival, vem a propósito um breve diálogo entre Alice e a duquesa, que era “muito feia” e de “baixa estatura”, não obstante a alteza da sua condição social.
“- Não imaginas como estou contente por voltar a ver-te, minha querida! – disse a Duquesa, dando uma palmadinha afectuosa no braço de Alice.”
Assim começa o nono capítulo, que tem por título “A história da falsa tartaruga” mas que, na realidade, se deveria intitular “A história da falsa neutralidade moral das histórias do país das maravilhas e não só”.
Porquê? A resposta é dada pela continuação da conversa. Alice, perdida nos seus pensamentos, ignora por completo a duquesa.  Por isso, “foi com alguma surpresa que a sentiu segredar-lhe ao ouvido:
“- Estás a pensar em qualquer coisa, minha querida. Até te esqueces de falar. Neste momento não posso dizer-te qual é a moral desses pensamentos, mas tentarei encontrá-la.
“- Talvez não exista nenhuma moral – atreveu-se a responder Alice.
“- Cala-te, menina! – disse a Duquesa. – Tudo tem uma moral. Basta que demos com ela”.
Pois é, mesmo as histórias menos moralistas têm, também, uma moral. Seria ingénuo pensar que há romances, filmes ou telenovelas que, do ponto de vista ético, são absolutamente neutros.
Por exemplo, as produções cinematográficas norte-americanas geralmente incluem, num dos principais papéis, algum negro. Obviamente, tal não acontece por acaso, mas por uma razão propositada que, neste caso, é o louvável princípio da inclusão e da igual dignidade de todos os seres humanos.
Nem sempre, contudo, é assim. Com efeito, há virtudes morais que as produções artísticas, sejam elas literárias ou cinematográficas, transfiguram em vícios e vícios que são apresentados como se fossem virtudes. Por exemplo, a obediência raramente é elogiada, porque se prefere exaltar a rebeldia. A infidelidade conjugal, por regra, não é vista como um mal a evitar, mas como um mérito acrescido, porque um herói, ou uma heroína, quer-se capaz de provocar paixões avassaladoras.
No entanto, mesmo quando se infringem certos cânones éticos, as novelas modernas nunca são totalmente amorais. Por isso, é inimaginável que uma produção artística proponha um Hitler galante e charmoso. Mas um glamouroso Che Guevara que, por sinal, não era muito melhor peça, já seria aceitável. Um bêbado empedernido pode transformar-se num príncipe encantado, mas nunca o seria um compulsivo fumador.
É muito positiva esta unanimidade na condenação do nazismo, mas é pena que não abarque outros totalitarismos, não menos nefandos. Não é de incentivar o tabagismo, mas é curiosa esta hipersensibilidade ética em relação a um mal menor, quando desordens bem maiores não são proscritas nem censuradas pela poderosa indústria do divertimento. Não seria preferível uma heroína, ou herói, que seja bom cidadão, bom cônjuge, boa mãe ou bom pai, honesto, trabalhador mas fumador, em vez de alguém infiel no matrimónio, mau progenitor, desleal em matéria profissional, bêbado e trapaceiro mas que … não fuma?!
Em tempo de férias, leia, vá ao cinema e ao teatro. Mas, se lhe ocorrer que o texto, o filme ou a peça não tem nenhuma moral, desengane-se. Lembre-se da sábia advertência da duquesa à Alice: “Tudo tem uma moral. Basta que demos com ela.”

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