Mataram o Cecil, valha-nos Deus!

JN 02.08.2015
AZEREDO LOPES

O leão Cecil, bicho mais célebre do Zimbabwe e arredores, foi morto e decapitado por um dentista norte-americano. A Internet incendiou-se, depois pegou fogo aos meios de comunicação mais tradicionais e finalmente fez arder a razão.
Não sou caçador nem pescador e, no que a seres ex-vivos diz respeito, limito-me a consumir aquilo que outros tenham criado, abatido, condicionado e preparado para a panela ou para ser comido cru. Mas isso sou eu, citadino empedernido. Se o desejo aperta para a galinha de cabidela, nenhuma angústia. Telefono à dona Olga, que por sua vez comunica à mãe, que por sua vez escolhe o bicho a sacrificar, a sangrar e a depenar para ser entregue nuzinho. Eu só pago o devido. Não sei, nem quero de todo saber, como foi o galináceo. Serei um hipócrita? Certamente, e bastante assumido.
Mas Cecil era, pelos vistos, mais do que um leão: era o leão. E Walter Palmer, dentista norte-americano do Minnesota, teve azar. Era só um idiota que caçava troféus, agora percebe o que custa ter-se metido com o leão errado, e não com um dos outros 49 que, por ano, são mortos como troféu no Zimbabwe. Tivesse morto e decapitado o leão José Alberto, o leão Joaquim ou o leão Albano, e ninguém queria saber. Matou Cecil, meteu-se numa alhada daquelas e até tem cartazes à porta do consultório, o mais ternurento dos quais diz "Arde no Inferno".
O destrambelhamento é das doenças mais profundamente contagiosas. Por isso, lá está, há quem queira extraditar o dentista para o Zimbabwe, onde decerto lhe tratariam das cáries ou de outras partes mais pudendas do corpo.
Ora, na mesma semana, foi conhecido um vídeo que mostra um polícia a assassinar um condutor negro desarmado. Quase ninguém ligou. Na mesma semana, na Síria foram violados, torturados e assassinados seres humanos, entre eles uma mulher, decapitada a pedido e como prenda de casamento. E quase ninguém ligou.
As coisas não são comparáveis, responder-me-ão. Ou, então, não tem o cu a ver com as calças. Pois eu acho que tem. Se dentista cometeu um ilícito, que responda por ele. Erigi-lo a anti-Cristo é no entanto ridículo, é grotesco e é insultuoso.
Azar teve Samuel Dubose, o condutor negro que morreu com uma bala na cabeça. Não se chamava Cecil.

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