O euro da contradição

JOÃO CÉSAR DAS NEVES
DN 2015.08.12

Enfrentamos hoje a mais poderosa máquina de produção de disparate que o mundo alguma vez suportou. A internet, coadjuvada pela televisão, jornais e outros meios de comunicação, despeja continuamente um caudal imenso de opiniões, informações e interpretações que, temos de o dizer, são na sua esmagadora maioria enormes tolices.
O facto é evidente até por tantos garantirem com veemência que, tirando a sua, as outras visões são asneira, o que confirma o domínio do absurdo. Diz-se tudo e o seu contrário. Chegou-se ao extremo de, na fúria opinativa, os comentadores já nem se darem ao trabalho de manter uma aparência de lógica e coerência, entrando facilmente em contradições.
A crise europeia, que ultimamente domina a enxurrada, mostra-o claramente. Multidões de autopromovidos especialistas asseguram com toda a certeza que a crise é do euro. A moeda única é a origem do mal e a solução é a sua mudança radical, senão mesmo o fim. Diz-se moribunda, apesar de ser das moedas mais estáveis e sólidas do mundo.
Curiosamente o primeiro país europeu atingido pela tempestade financeira foi a Islândia, exterior à moeda única. Logo que se viu afectada, a ilha, que nem sequer era da União, reagiu pedindo a adesão à moeda europeia. Será o euro assim tão mau? Felizmente para os analistas a Grécia, segunda a sofrer a crise, participava na malfadada divisa, confirmando as tais previsões. Só que os gregos, em vez de aproveitarem para se livrarem da terrível prisão monetária, insistem teimosamente em permanecer. É mesmo, no meio da desgraça, um dos poucos consensos nacionais. Perante uma evidência destas, até a cegueira ideológica mais total devia repensar a posição.
Passando das vítimas aos algozes, as incongruências continuam. O elemento mais ensurdecedor do debate é, sem dúvida, a culpa germânica. Alemanha, em geral, e senhora Merkel em particular são acusadas de estarem dominadas por um súbito e inexplicável sadismo anti-helénico e cegueira antieuropeia. Só que o libelo também cai em subtis contradições.
Omite-se que a Alemanha foi o primeiro país do euro a suportar a austeridade, com as medidas do chanceler Schröder, no poder de 1998 a 2005. Nenhum dos críticos lembra aquilo que os alemães não olvidam. Essa violenta reestruturação orçamental foi, aliás, o que permitiu ao país suportar bem a crise posterior, que agora afecta os parceiros. Como, graças ao sacrifício, a economia beneficiou muito com a moeda única, os analistas deduzem que o projecto de união monetária não passou de um truque teutónico para ganhar à custa dos outros ingénuos Estados membros. Mas, mesmo admitindo que seja verdade, como podem agora denunciar a Alemanha de forçar a Grécia a sair? Então afinal os alemães ganham prendendo os pobres dentro ou expulsando-os?
Em todas as análises fica sempre excluído o aspecto decisivo, as largas centenas de milhares de milhões de euros que a Grécia recebeu dos parceiros, e quer continuar a receber. Quando esporadicamente se fala nisso é surpreendentemente para voltar a acusar a Alemanha de ajudar apenas para apoiar os seus próprios bancos, carregados de dívida grega. Será, ao menos, esta é uma acusação coerente?
Os bancos europeus, alemães e não só emprestaram muito ao governo grego. Mas o argumento, se foi válido, há muito falhou, com a anulação dessa dívida nas sucessivas falências gregas. Mesmo admitindo que a ajuda foi só para beneficiar a banca europeia, os únicos que se poderiam queixar seriam os contribuintes europeus, alemães e não só, ao ver os seus impostos nos lucros bancários. Só que esses não protestam, pois, sendo também depositantes, temem pelas poupanças se a banca sofresse com a desgraça dos gregos. Os quais, em qualquer caso, não podem protestar, pois beneficiaram de enorme e preciosa ajuda. E as condições férreas da austeridade são muito menos graves do que aquilo que o país viveria se, como a Argentina na viragem do milénio, não tivesse sido ajudado.
O câmbio mostra que o euro está de boa saúde. A crise é grega, profunda, intensa e complexa. Isso naturalmente afecta toda a Europa, que tem de lidar com o terrível drama. O momento é delicado e decisivo. Para o compreender é preciso esforço, argúcia, serenidade e, sobretudo, respeito por todos os participantes, envoltos em dolorosas escolhas.
Nos media o caso é tratado numa girândola de rudes teorias da conspiração, A Guerra dos Tronos em reality show, o que só agrava a situação. Embebida em adrenalina e ficção, a enxurrada de disparate já nem finge aparentar coerência.

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