Ao fim e ao cabo

Miguel Sousa Tavares, Expresso, 20151024

Depois do que disse Cavaco Silva na quinta-feira, não me restam grandes dúvidas de que o Presidente não dará posse a um governo de esquerda que António Costa lhe venha a apresentar. Mas isso não vai obstar a que António Costa se junte ao Bloco e ao PCP para chumbar à partida um governo PSD/CDS. E tudo indica que o fará sem, simultaneamente, revelar as linhas finais do acordo que terá estabelecido para um governo alternativo de todas as esquerdas chefiado por ele. A ideia veiculada na imprensa é a de que Costa não pretende desviar as atenções da discussão sobre o programa da coligação, misturando-a com a discussão sobre o seu próprio programa alternativo. É legítimo e faz sentido: eu quero ouvir primeiro os fundamentos do PS para recusar a viabilização de um governo de centro-direita, com concessões feitas ao PS, para depois comparar com um eventual programa de governo da esquerda. E vai ser curioso fazê-lo, porque, ou muito me engano, ou o acordo que Costa vai fazer com o BE e o PCP deixará o programa de governo do PS muito mais desvirtuado em relação ao original do que ficaria num acordo que tivesse feito com a coligação, se alguma vez tivesse tido vontade desse acordo — o que, à vista de todos, nunca sucedeu.
Como aqui escrevi na semana passada, por mais concessões que arrancassem à coligação, para si mesmo Costa nunca conseguiria mais do que ser o líder derrotado da oposição, provavelmente sem condições internas para continuar a liderar o PS. Já o acordo com a extrema-esquerda garante-lhe, julga ele, a sua sobrevivência política interna e, por acréscimo, o poder servido numa bandeja. Assim Cavaco deixe, o que não me parece que vá acontecer.
Mas nem nesta perspectiva da intervenção presidencial perde importância a questão de saber qual seria o preço a pagar por este improvável casamento de opostos que, por um passe de magia, conseguiria transformar uma derrota em vitória. Tendo, desde o início, dado sinais claros de que a negociação à direita não era para ser levada a sério, António Costa cometeu um erro de estratégia negocial, ficando exposto e vulnerável nas mãos dos seus inesperados aliados à esquerda. E agora, sirva ou não o acordo para alguma coisa, terá de ceder o que for preciso, porque já não tem chão de recuo: depois de inviabilizar o acordo com a coligação, de tudo ter ostensivamente feito para que nem sequer houvesse possibilidades de uma conversa séria, depois de ter chumbado o governo de Passos Coelho, se também não tem acordo à esquerda, está morto. E o PS com ele. Tudo não terá passado de uma leviandade irresponsável.
Pelo que se vai sabendo, António Costa já cedeu ao BE nos três pontos que Catarina Martins tinha enunciado como necessários e suficientes para chegar a acordo: descongelamento das pensões, renúncia ao despedimento conciliatório e à redução da TSU para os trabalhadores — base de todo o programa económico de governo dos socialistas. Mas, aparentemente, o necessário já deixou de ser suficiente. Cito João Semedo, do BE: “Já se sabe que o acordo, caso se concretize, vai muito além desses três pontos. Posso dar alguns exemplos: fim dos exames do primeiro ciclo e da entrega às Misericórdias de hospitais do SNS, revogação das taxas moderadores da IGV, revisão dos escalões do IRS, actualização das pensões, reposição do abono de família, reposição de salários e pensões”. Mais o aumento imediato do salário mínimo, que o BE e o PCP querem aumentar em 20%, para 600 euros. Todo um programa — e ainda faltam as condições do PCP, com o qual as negociações “estão mais atrasadas”. Vejamos o significado político de algumas destas medidas.
O fim dos exames do primeiro ciclo é a continuação da aposta num ensino sem deveres, nem responsabilidades, nem resultados. É uma clarividente lição de pedagogia infantil: de pequenino se desresponsabiliza o menino. A par do fim consumado de qualquer avaliação de professores com o recente acórdão do Tribunal Constitucional (onde será que a Constituição proíbe a avaliação de professores?), a ideia de eliminar também os exames para os estudantes consagra, de uma vez por todas, a impossibilidade de uma política que premeie o mérito dos professores e castigue a mediocridade. Na melhor tradição da nossa administração pública.
A questão é saber qual o preço a pagar por este improvável casamento de opostos. Se Cavaco celebrar o casamento
O fim das taxas moderadores do aborto não tem nada que ver com a despenalização do aborto — que está consagrada e bem. Agora, trata-se de promover o aborto e, uma vez mais, desresponsabilizar quem não se dá ao trabalho de ter outros métodos contraceptivos. E é uma grande lição de ética: se algum dos 32% de cidadãos que não estão isentos de taxas moderadoras (todos os outros estão) se tiver de submeter a uma cirurgia para salvar a vida, paga taxa; se for fazer um aborto (dois, três ou quatro), está isento. Mas é uma questão fracturante e quem não fracturar é de direita, horror!
O salário mínimo de 600 euros é uma medida cuja justiça não se discute. Sempre fui e hei-de ser veementemente contra os empresários que acreditam que a sua prosperidade deriva de pagarem o menos que puderem aos seus trabalhadores. Acho muito bem feito que imponham um salário mínimo de 600 euros para os trabalhadores das grandes cadeias de supermercados, por exemplo, as quais prosperam pagando salários de miséria, explorando os fornecedores até ao tutano e depois declarando os lucros na Holanda. O problema são os 2/3 de pequenas e médias empresas do país — as tais que o PCP diz defender. A medida vai atingi-las em cheio, numa altura de crise, em que o crédito lhes está vedado e a subida de preços também. Quantas teriam de despedir trabalhadores, quantas encerrariam as portas, para que a esquerda pudesse dizer que subiu o salário mínimo para 600 euros? Se fizeram as contas e concluíram que todas suportam o aumento, ninguém seria despedido e ainda se criariam mais postos de trabalho, então, muito bem: apoio e subscrevo.
As restantes medidas de que fala João Semedo (incluindo o fim de todas as taxas moderadoras do SNS, mesmo para a senhora que foi 168 vezes à urgência, apenas num ano), são tudo medidas que nos custariam uns milhares de milhões em despesas do Estado. Não é o cumprimento conjuntural do défice ou os limites do Tratado Orçamental que me preocupam. Em todos os países há alturas em que o Estado gasta mais do que obtém. Mas são alturas excepcionais, em que o Estado é chamado a investir e a endividar-se para evitar males maiores para a economia. O problema é que aqui trata-se de despesas correntes, de funcionamento e não de investimento: não produzem nenhum efeito de crescimento, apenas acrescentam dívida e reclamam mais receitas extraordinárias sobre a economia para as financiar. Não sei se também aqui PS e BE terão feito contas para tentar saber quanto nos custariam a mais estas medidas tão simpáticas e como é que se propõem, ou propunham, pagá-las. Mas não é preciso ser bruxo para adivinhar que a resposta está na ambígua formulação da “revisão dos escalões do IRS”. Traduzindo, a ideia é aumentar o IRS e, provavelmente, também o IRC para as empresas. E esperam que com isso a economia comece a crescer a sério.
No meio deste limbo governativo, alguns sectores do Estado das Corporações, que é o nosso, vão, pela calada, obtendo novos privilégios: os trabalhadores das autarquias vêem o seu horário laboral descer para as 35 horas e os polícias conquistam o direito de se reformarem aos 55 anos, depois de 36 nessa missão de alto risco. O Estado é generoso: paga melhor, nunca despede, não exige nenhuma avaliação de desempenho, pagando o mesmo aos bons e aos maus, contenta-se com menos trabalho e reforma mais cedo. O facto de tudo isto não ser sustentável senão à custa de esmifrar os que não vivem sob a sua protecção é apenas um pormenor. O pormenor que nos arruína. E que, uma vez mais, seja qual for o governo, vai continuar por resolver.
A forma como António Costa impôs a eleição de Ferro Rodrigues como presidente da Assembleia da República, ao arrepio da tradição da casa, foi um passo mais em direção a um clima de divisão e guerra civil instalada na sequência do 4 de outubro.
Ver metade do Parlamento acolher em silêncio a escolha do seu novo presidente não é bom augúrio. E, podendo desde logo tentar ultrapassar esse clima, foi lamentável ver o próprio Ferro Rodrigues assumir-se como um presidente de facção. Tal qual aquilo de que acusam Cavaco Silva.

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