Deus nos defenda

VASCO PULIDO VALENTE Público 03/10/2015

Acordei tarde nesta manhã fatal, compenetrado de que devia reflectir. Infelizmente, tornei a adormecer.
É compreensível a prudência da Constituinte: não queria que os “reaccionários” saíssem directamente de uma “arruada” para a urna e resolveu impor 24 horas de reflexão para que eles pudessem meditar em paz nas belezas do socialismo segundo Cunhal.
Passou o tempo e este dia morto já não faz sentido, mas continua a ser obrigatório. Um comentário político, como este normalmente é, não pode ser publicado se falar de política. Só que, se não falar de política, não fala de nada e há um problema quase insuperável – mesmo para o mais convicto palerma – em não falar de nada. Ainda por cima, como já notou um candidato, a política está em toda a parte. A fuga para o futebol ou para a arte corre sempre o perigo de por hábito ou inadvertência perturbar a consciência eleitoral de cada um.
Por isso, acordei tarde nesta manhã fatal, compenetrado de que devia reflectir. Infelizmente, tornei a adormecer. O encargo de “reflectir” sobre a salvação da Pátria, além de melancólico, pesava muito. Quando a meio da manhã acabei, angustiado, por me levantar, fabriquei um café carregando num botão e passei para uma cadeira onde folheei uma revista inglesa e li um ensaio sobre um pintor de que discretamente não direi o nome, não vá a própria existência do homem influenciar ou virar do avesso a necessária tranquilidade de algum cidadão. A seguir a esta limpeza do espírito, hesitei entre “Os três mosqueteiros”, que pus de parte porque tresandavam a política, e um livro sobre teologia medieval que me sobrou da Faculdade e que, até nessa altura, não consegui perceber.
Essa distracção, pelo seu santo carácter, conseguiu restabelecer na minha cabeça uma certa calma. Contemplei com a alegria do justo a probabilidade de não tornar a ver a cara de Passos Coelho, Paulo Portas, António Costa, Catarina Martins e Jerónimo de Sousa, nem de qualquer comentarista de serviço, nem das múltiplas rezas que mutuamente se oferecem, por necessidade de ofício ou pura fé. O silêncio de hoje é um milagre providencial, que agradeço e louvo. Mas ele próprio provoca a desconfiança de que existe por aí, e bem escondido, um ente supremo que, por caminhos ínvios, se aplica a desviar os portugueses da reflexão que a lei, o costume e a cautela lhes mandam guardar nesta altura perigosa. Deus nos defenda.

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