A propósito da morte no S. José

PAULO RANGEL Público 29/12/2015

Os hospitais de Lisboa, em que se passou este terrível episódio, têm muito mais meios do que tem Coimbra ou de que tem o Porto e, no entanto, não são capazes de gerar respostas de idêntico nível.
No dia e na hora em que a televisão – na esteira do Correio da Manhã – noticiou que um jovem de 29 anos, David Duarte, morrera no Hospital de S. José, em Lisboa, na sequência de um incidente provocado por um aneurisma, eu estava a ver o noticiário televisivo. Assim que explicaram que a morte se teria ficado a dever presumivelmente à inexistência de neurocirurgiões de serviço durante o fim-de-semana, fiquei chocado e reagi veementemente, como facilmente pode atestar a familiar que estava ao meu lado. É absolutamente inadmissível que um caso destes possa ter ocorrido.
É estranho que um hospital daquela envergadura viva com aquela lacuna ou que não tenha um procedimento protocolar já estabelecido com outros hospitais da área da grande Lisboa. Mais estranho me parece ainda que, independentemente de tudo o resto, não houvesse nenhum reencaminhamento para algum hospital da zona da grande Lisboa, público ou privado. Ou até que, em último recurso, não se reencaminhasse o doente para Coimbra ou que, mesmo que isso seja bizarro, não se falasse informalmente a algum neurocirurgião do quadro para, à boa maneira portuguesa, valer a uma aflição.
Não percebi, não compreendi, não me conformei. E não me conformo. Lamento profundamente; estou ciente de que não é caso único, nesta como noutras especialidades. Mas é grave, particularmente grave.
Isto esclarecido, importa reflectir sobre o debate público – seja mediático, seja político – que se seguiu. Quase todo o debate foi feito com alarde e com demagogia, numa lógica de aproveitamento “político”. Primeiro, pelos actores partidários e depois pelos candidatos presidenciais. Quase todos, praticamente sem excepção, afinando pelo mesmo diapasão: o de que a falta de neurocirurgião de serviço é uma consequência imediata da política de cortes cegos na saúde e no Serviço Nacional de Saúde. Sintomaticamente, a única voz que, de um modo responsável e sereno, chamou a atenção para que esta falha não era uma simples decorrência dos ajustamentos financeiros na saúde foi a do Ministro Adalberto Campos Fernandes. Com efeito, e num momento em que teria sido fácil embarcar na “corrida ao populismo”, o novo titular da pasta chamou a atenção para que estava também em jogo um problema de “organização” e deu até os exemplos dos hospitais de Coimbra e do Porto, onde uma situação desta natureza não teria nunca sucedido. Eis uma declaração e uma atitude que mostram a fibra de um ministro e que nos dão a confiança de que, mais uma vez – tal como acontecia no executivo anterior –, a pasta da saúde está muito bem entregue.
O primeiro ponto a sublinhar é o do sentido da demissão dos Presidentes da Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo, do agrupamento de Lisboa Central e do agrupamento de Lisboa Norte. Parece manifesto que a demissão destes responsáveis só pode dever-se a um reconhecimento de que há uma falha de organização, uma falha administrativa. Se se tratasse de uma discordância ligada a consequências das políticas de contenção financeira, as demissões – nesta altura e nesta contingência – não fariam qualquer sentido. Estes responsáveis da alta administração do Estado foram justamente os protagonistas da concretização dessa política de contenção, centrada no aumento da eficiência, no combate ao desperdício e à corrupção e na rentabilização generalizada dos recursos e meios disponíveis. Não faz qualquer sentido que viessem agora – já com outro Governo – esgrimir a sua falta de acordo com essas políticas. Na verdade, o que atesta o seu gesto é que todos compreenderam que tinham uma quota-parte de responsabilidade – mesmo que meramente objectiva – na falha de organização. Quando centros hospitalares com a dimensão, a estatura e os recursos dos Hospitais de Santa Maria e S. José (e adjacentes) não são capazes de se coordenar para fazer frente a um episódio clínico desta natureza, não são precisas mais palavras. A demissão foi um acto digno, mas é um corolário evidente da assunção de uma responsabilidade administrativa e organizativa.
O segundo ponto que interessa enfatizar é a comparação com os agrupamentos hospitalares de Coimbra e do Porto. A generalidade das pessoas não tem noção, mas o nosso Serviço Nacional de Saúde atenta profundamente contra a equidade territorial. Do ponto de vista da saúde, há cidadãos de primeira – os que habitam na região de Lisboa e Vale do Tejo – e há cidadãos de segunda – os que habitam no restante território. O Estado gasta muito mais per capita, em saúde, com os habitantes da região da capital do que gasta com os das outras regiões. O dinheiro que o Estado injectou em hospitais de Lisboa como o S. José ou o Santa Maria não tem comparação, por exemplo, com o que despendeu com os Hospitais de S. João ou de Santo António no Porto. E, no entanto, os desempenhos e até os resultados em sede de contas de uns e de outros deixam os hospitais do Norte a ganhar, e por muitos, aos hospitais da capital. Os hospitais de Lisboa, em que se passou este terrível episódio, têm muito mais meios do que tem Coimbra ou de que tem o Porto e, no entanto, não são capazes de gerar respostas de idêntico nível. A explicação está, mais uma vez, como indiciou o Ministro, na gestão, na organização, na administração. 
As linhas que acabo de escrever são sensíveis e são atreitas à controvérsia e à manipulação. Mas mandam a verdade, a razoabilidade e a responsabilidade, enquanto critérios da acção pública, que não se impute esta tragédia a uma política justa e necessária de racionalização de recursos. Muito menos quando os recursos à disposição das instituições visadas eram, apesar de tudo, proporcionalmente superiores aos de outras instituições de natureza equivalente.

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