Jesus, pobres, estrangeiros, refugiados, privilegiados e famílias pouco normais

PAULO RANGEL Público 22/12/2015
  1. Já aqui escrevi que o Natal — enquanto história, enquanto narrativa, enquanto midrash — nasceu contra o preconceito. O evangelho da infância, apenas constante das narrações de Mateus e de Lucas — de resto, largamente incompatíveis entre si —, está carregado de mensagens contra o preconceito.
  2. A mensagem mais divulgada é a mensagem contra o preconceito social: Jesus nasce em condições altamente precárias. A sua família é notoriamente uma família humilde e pobre. Está transitoriamente deslocada. Procura debalde um alojamento para garantir o parto em condições mínimas de dignidade, mas resta-lhe apenas um estábulo: “E envolveu-o em panos, e deitou-o numa manjedoura, porque não havia lugar para eles na estalagem” (Lc 2,7). Jesus nasce na mais desconcertante pobreza e fragilidade. Esta circunstância, só por si, é todo um evangelho. Jesus veio para os mais pobres, para os frágeis, para os que são rejeitados.
  3. A segunda mensagem dirige-se ao preconceito territorial, do tipo nacional ou tribal. Jesus nasce fora da terra da sua família, que era Nazaré, na Galileia. Maria dá à luz em Belém da Judeia, terra de David. Essa localização garante o cumprimento da profecia que vem do Antigo Testamento, embora nada nos assegure historicamente o acerto do lugar de nascença. José e Maria ter-se-iam deslocado a Belém, por José ser descendente de David, para efeitos de cumprir o recenseamento ordenado por Roma. Nesta precisão, seja ela factual, seja ela romanceada, cabe todo um programa: retratar Jesus como o ungido, como o Messias, por ter nascido na cidade assinalada pelas profecias. Mas cabe também um outro sentido, mais prosaico, mas muito presente nos ensinamentos futuros de Jesus: Ele nasce fora da sua terra. É um deslocado: não tem casa nem lar para nascer. Se a isto somarmos a referência de Mateus à fuga para o Egipto, para evitar a perseguição e a matança de Herodes, então reforça-se a ideia de deslocação. O episódio da matança dos primogénitos e da fuga para o Egipto é uma recuperação, na vida de Jesus, da saga de Moisés. E, por isso, a sua verosimilhança é pequena. Mas o seu significado e o seu sentido são transcendentes. Jesus e a família de Nazaré também foram refugiados e foram refugiados por perseguição política e político-religiosa. Se o nascimento em Belém, afirmado por Mateus e por Lucas, só por si, já rompe com o preconceito tribal ou nacional, o refúgio no Egipto — só narrado por Mateus — rompe-o definitivamente. Jesus nasce contra o preconceito territorial: o seu Natal não discrimina contra os que vêm de fora e contra os que têm de ir para fora. Se Jesus nasceu fora, longe de casa, e se teve de fugir para o estrangeiro, logo na primeira idade, como poderia o seu ensinamento forjar as bases de uma discriminação territorial ou nacional?
  4. A terceira mensagem é complementar das duas anteriores, mas é ainda mais global e mais universal: Jesus nasce contra o preconceito racial e Jesus nasce para todos, mesmo para os cultos e ricos. Evidentemente esta mensagem alimenta-se essencialmente da viagem e da visita dos magos do Oriente. A tradição diz que são três e que seriam provenientes de diferentes partes, pese embora Mateus se refira a eles sem fornecer esses detalhes. O número três é decerto uma sugestão das três riquezas oferecidas — ouro, incenso e mirra —–, presumindo que a cada uma delas correspondesse uma pessoa. E naturalmente casa com o lugar sagrado que o número três ocupa na simbologia cristã que vai da santíssima trindade aos três dias de ressurreição, passando pelos três anos de vida pública e pelos 33 anos da vida de Jesus. Pontifica aqui realmente a ideia de que vieram de longe, pois ela aponta inequivocamente para a vocação de universalidade. Agora, não são apenas os pastores de Lucas, gente das redondezas. Agora são também os sábios de Mateus, gente cosmopolita e viajada. Mas mais do que isso: gente culta e bem relacionada, a ponto de ser recebida por Herodes e de suscitar a reunião dos príncipes, dos sacerdotes e dos escribas do povo (Mt 2,4). Jesus veio para todos. E, a julgar pelas riquezas oferecidas, veio também para os ricos e os poderosos. A sua universalidade não é apenas ligada ao território, à origem, à raça; é outrossim social. Ele veio para os pobres, mas não só para eles. Insiste-se: veio para todos. É esse o lugar mítico e místico dos magos.
  5. Mas há ainda uma quarta mensagem, a que em tempos já aqui aludi, porventura a mais esquecida e escondida: Jesus nasce contra o preconceito moral. A mãe de Jesus, apesar de comprometida com José pelos “esponsais” — uma espécie de primeira fase do casamento hebraico em que não há coabitação —, ainda não estava definitivamente casada com ele. E quando José a sabe grávida, numa atitude digna, é tentado a retirar-se sem a difamar. Mas, confiando na palavra de Maria e na mensagem divina que recebe através de sonhos, acolhe-a, toma-a por mulher e “adopta” como seu o filho que ela traz no ventre. Por muito que a muitos custe pôr as coisas neste pé: Jesus começa por ser o filho de uma mãe “solteira”, prestes a ser abandonada pelo seu noivo. E esta circunstância de vida, ultrapassada pela aceitação de Maria, sublimada pelo acolhimento de José, não pode ser indiferente aos ensinamentos de Jesus. Maria aceitou o “desafio” divino; José não se comportou de acordo com compreensíveis critérios humanos. Nesta narrativa, ambos souberam aceitar algo inexplicável e com isso ambos sepultaram o preconceito moral. Como em muitos dos episódios da vida de Jesus se há-de ver, Jesus também nasceu contra o moralismo e a hipocrisia moral. Também essa luta contra o preconceito está hipostasiada no presépio e no Natal. A Sagrada Família não é uma família canónica, não é uma família normal. E, no entanto, é exemplar.

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