A Eutanásia e a Psiquiatria

Pedro Afonso
Expresso | 05.03.2016

Numa crónica intitulada “A morte”, publicada na revista do Expresso no passado dia 20 de Fevereiro, o meu colega José Gameiro, referindo-se a um texto de opinião que publiquei no jornal Observador sobre a eutanásia, acusou-me de ter expresso uma ideia manipulatória, cientificamente errada, revelando um desconhecimento que só pode ser justificado pelas minhas convicções. Mais à frente escreve que nunca um doente deprimido poderá ser sujeito a eutanásia ou a suicídio assistido.
A ideia que expressei não é de fato manipulatória; manipulação é defender a eutanásia como sendo um ato piedoso, já que um doente incurável ou terminal pode ser facilmente manipulado e arrastado para o suicídio. Se a vida humana não vale por si mesmo, qualquer um pode sempre instrumentalizá-la em função de qualquer finalidade ou objetivo contingente.
Refuto a acusação de que o meu texto de opinião é incorreto cientificamente, nem tão-pouco posso concordar com a afirmação que nunca um doente deprimido poderá ser sujeito à prática de eutanásia. Infelizmente, a eutanásia já é praticada há vários anos em doentes psiquiátricos (inclusive com depressão) e existem dados científicos que demonstram de forma inequívoca esta realidade.
Num estudo publicado em 2015 no British Medical Journal (Thienpont et al.) realizado numa clínica psiquiátrica belga (2007-2011), cerca de 100 doentes psiquiátricos solicitaram eutanásia devido ao sofrimento causado por doenças psiquiátricas. Os diagnósticos por ordem decrescente de frequência foram: depressão, alterações de personalidade, perturbações do espectro do autismo (síndrome de Asperger). Foram aceites para procedimento de eutanásia 45 pedidos, tendo sido executada a eutanásia em 35 doentes psiquiátricos.
Outro estudo recente, publicado em 2016 no JAMA Psychiatry (Kim et al.), revelou que entre 2011 e meados de 2014 foram executadas 66 eutanásias em doentes psiquiátricos. Embora tenham sido considerados como “casos resistentes ao tratamento”, estranhamente 20% dos doentes nunca tiveram qualquer internamento psiquiátrico. Em 11% dos casos não havia uma avaliação psiquiátrica independente no que diz respeito à patologia, e em 24% dos casos foram formulados pareceres contrários relativamente ao cumprimento dos critérios legais para se realizar eutanásia naqueles doentes. 
A sujeição dos doentes psiquiátricos a eutanásia constitui atualmente um motivo de enorme preocupação na classe médica. Paul S. Appelbaum escreveu recentemente um editorial (10/02/2016) no Journal of American Medical Association, alertando para a gravidade do problema, nomeadamente para possibilidade de uma vez legalizada a eutanásia os psiquiatras desistirem de tratar alguns doentes com depressão, e no efeito de desmoralização que isso poderá ter noutros doentes com a mesma doença.
Devo ainda assumir o meu “desconhecimento sobre a eutanásia” e que neste caso pode ser explicado pelas minhas convicções. Não tenho a pretensão de conhecer propriamente “o método”, estagiando nas clínicas onde a eutanásia é executada.  Como médico, não tenciono praticá-la, nem tão-pouco recomendá-la a nenhum dos meus doentes. A eutanásia opõe-se à medicina e acaba por ser a sua negação. Consequentemente, a eutanásia não é um recurso da medicina, pois expulsa a medicina, substituindo-a irreversivelmente.
Finalmente, considero a vida humana um valor inegociável. Prefiro defender a “vida assistida” em vez de admitir a “morte assistida”. Cabe-nos a todos reclamar a humanização do fim da vida, através de um conjunto de meios e atenções, prestando à pessoa os cuidados assistenciais paliativos que necessita e que dignificam não apenas quem os recebe, mas também quem os pratica. 

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