Conto de Páscoa

João César das Neves
DN 2016.03.24
É meio da noite. Domina a escuridão mais profunda. Para onde quer que olhe, é o negro mais espesso que me olha de volta. Não sei de onde vim, não sei onde estou, nem vejo para onde vou. Esta é a minha condição. Sei que sou, mas mais não sei. À volta, as trevas são a envolvente e o horizonte. É meio da noite. Sempre foi meio da noite. Desde a madrugada da minha vida que é meio da noite, e ainda o será no seu ocaso. Todos os dias são meio da noite.
Disseram-me que nem sempre foi assim. Disseram-me que já foi dia claro. Houve um tempo em que o Sol brilhava lá no alto e todos podíamos ver tudo em volta. Era uma luz fulgurante, gloriosa, triunfante, e todos viviam durante o dia num mundo em que todos viam. Disseram-me que nessa altura se conhecia a vizinhança, se avistava o longínquo e se reconhecia o caminho de um para o outro. Já houve quem vivesse banhado em luz. Sempre.
Isso foi antes de eu ser. Depois deixou de se ver. Depois passou a ser meio da noite. Disseram-me que foi por causa de uma serpente e uma maçã. Disseram-me que foi isso que toldou os céus. Não sei bem como, mas assim se fizeram as trevas. Alguns afirmam que o Sol se retirou, outros que ainda lá está, acima do espesso cobertor de nuvens negras. O que sei é que é meio da noite. Quem pode viver na escuridão?
Não podemos viver nas trevas. É impossível existir no breu. Nós não temos de permanecer no escuro, porque no negrume há uma chama. Uma pequenina luzinha que cada um de nós possui. Uma luz que não vislumbra o longe nem o horizonte, que não distingue sequer as cercanias. Uma luz que não alcança o distante, nem clareia o caminho, mas ilumina o próximo passo. Um passo de cada vez. Um passo; isso ela permite, mesmo no meio da noite. Essa luz é-nos tão preciosa como o ar que respiramos; tão vital como o sopro que nos anima. Porque ninguém pode viver na escuridão. Sem essa luzinha seríamos engolidos pelas trevas, porque é meio da noite.
Essa chama chama-se fé. Todos temos fé. Todos, por mais diferentes que sejamos, temos essa luz que nos permite dar o próximo passo. Pois sem fé ninguém vive. Quem pode permanecer na escuridão? Todos temos fé, aquela luz que guia o próximo passo no meio da noite. Todos temos fé; o que nos distingue é onde pomos a nossa fé. Aquilo que faz de nós o que somos, o que determina os nossos passos, é onde colocamos a nossa fé. A que atribuímos a luz que nos guia; que nos permite levantarmo-nos e darmos o próximo passo. O passo que damos no meio da noite. Porque é sempre meio da noite. Aquilo onde pomos a nossa fé é que determina onde vamos, e faz de nós o que somos.
Alguns têm fé em si mesmos. Estes são os mais tristes. Engolem a luz e, alheios ao circundante, andam na escuridão à procura do que já têm. Há também os que põe a sua fé nas riquezas, na tecnologia, empresa, lucro, prazer, abundância. Esses fazem uma grande pilha de coisas e depositam em cima a sua chama, ficando presos às posses; parados até perderem o que tinham. Existem ainda os que colocam a sua fé no sucesso no progresso, ideologia, ciência, partido, revolução, futuro. Penduram a sua luz em algo que se move e correm atrás disso, sem saberem onde vão. Desses, os que escolhem a carreira, a família, a fama ou o poder nem notam que a luz que se baloiça à sua frente só anda por estar presa a si mesmos.
Todos estes são os que eu vejo perdidos no meio da noite. Porque apenas uma entidade é digna de receber a nossa fé: a Luz. Só a Luz é digna de receber aquela chama que trazemos, a nossa fé. Porque no meio da noite há Luz: "o povo que andava nas trevas viu uma grande luz; habitavam numa terra de sombras, mas uma luz brilhou sobre eles" (Is 9, 1).
É verdade que é meio da noite, e as trevas estão em todo o lado. A escuridão domina. Apesar disso, também é verdade que "o Verbo era a Luz verdadeira, que, ao vir ao mundo, a todo o homem ilumina. Ele estava no mundo e por Ele o mundo veio à existência, mas o mundo não o reconheceu" (Jo 1, 9-10). Este é o verdadeiro drama desta noite: "a Luz brilhou nas trevas, mas as trevas não a receberam" (Jo 1, 5). O Sol, tapado por causa da serpente e da maçã, não desistiu de nós. Quis vir ter connosco ao meio da noite. Mas foi desprezado, crucificado e morto. E ressuscitou ao terceiro dia. A Igreja é a comunidade dos que colocam a sua fé nessa luz. É o povo que, por isso, consegue ver, mesmo no meio da noite.
"Luz terna e suave no meio da noite, leva-nos mais longe. Não temos aqui uma morada permanente. Leva--nos mais longe" (Bto. John Henry Newman, 1833).

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