Europa: declínio ou metamorfose?

João Paulo Geada
2016.03.16

Faltam poucos dias para o início da Primavera. Desde o início de Março que o preço dos táxis passou a ser fixo entre os aeroportos e a cidade, a partir de Orly paga-se 30 ou 35 € consoante se vá para a rive gauche ou para a rive droite do rio Sena. O taxista, africano, calmo, já próximo dos seus 60 anos, diz ser originário dos Camarões. O país foi dominado, na era colonial, sucessivamente por alemães, ingleses e por fim franceses. Mas antes de todos eles, descoberto pelos portugueses. Sabe a origem do nome do meu país? O rio que desagua perto de Douala, capital económica do país, tinha tanta abundância de camarões que os portugueses assim o batizaram. Daí surgiu um país, hoje muçulmano no Norte, cristão no Sul, anglófono na fronteira com a Nigéria, francófono no resto. A situação é estável? Sim, responde, mas hoje em dia nada é estável em parte nenhuma. As pessoas são más, são inimigas umas das outras, a humanidade faz coisas terríveis um pouco por todo o lado. Como combater isso? As religiões, talvez. Quando éramos crianças, vivíamos juntos, brincávamos juntos, na mesma aldeia, na mesma praça, igreja de um lado, mesquita do outro…
O tempo está limpo mas frio, não há uma nuvem. A temperatura máxima do dia em Paris é pouco mais alta que a mínima em Lisboa. Paris continua a ter muitos turistas, mas não as multidões que afluem nas épocas de pico e por certo também não ao nível do que era o turismo antes de 2015. Os efeitos prolongados dos atentados do ano passado, sobretudo após o ataque mortífero ao Bataclan, pesam ainda no volume de reservas dos hotéis dessa meca turística que é Paris. A presença de asiáticos, chineses em particular, destaca-se sobremaneira em todas as zonas turísticas da cidade. São agora o maior contingente. Mas a quebra nos outros mercados emissores fez com que os preços tenham baixado, discreta mas inequivocamente, em todos os tipos de hotéis, e faz com que, à noite, se note que os restaurantes estão a meio gás, ou menos, ou que, durante o dia, as Galeries Lafayette ou Printemps estejam menos sobrepovoadas do que antes.
Sexta-feira da Quaresma. Um pequeno grupo de portugueses está presente, entre outros fiéis vindos de todo o mundo, na missa de final da tarde em Notre-Dâme. O abraço da paz é particularmente emotivo entre pessoas de todas as cores e nacionalidades. Depois, um jantar simples algures num pequeno bistrot no Quartier Latin. No dia seguinte estes portugueses irão juntar.se a um grupo bem mais alargado de franceses e ainda bem mais alargado de europeus numa das salas de teatro emblemáticas da cidade não muito longe do Arco do Triunfo, aliás praça Charles de Gaulle. Os irredutíveis lusitanos e gauleses estarão juntos com um sem número de europeus durante todo o sábado, na Salle Gaveau, para medir o pulso à Europa e à civilização ocidental e proclamar uma vez mais a necessidade imperiosa de regresso às raízes e aos valores humanistas que, com o passar do tempo, o Ocidente desprezou e a própria Europa esqueceu.
Esta Europa parece estar unicamente preocupada com a entrada cada vez mais massiva de migrantes - e com o terrorismo. A França por sua vez está, de forma míope, mais preocupada em fazer contravapor à Turquia – que viu os seus pedidos de entrada na EU, e antes na CEE, recusados desde os anos 70… - do que em resolver de vez o problema da guerra na Síria e a terrível odisseia de centenas de milhar de refugiados. No meio da tragédia, a verdadeira anedota do momento em França é a condecoração – a atribuição da legião de honra - do príncipe herdeiro da Arábia Saudita, quase às escondidas, por François Hollande. É certo que o reino saudita encomendou em 2015 dezenas de Airbus e destinou ainda 3 biliões em compras de armamento só para a França. Mas a condecoração ao mais alto nível do dignatário saudita exigiu ao socialista e progressista Hollande uma dissimulação e um contorcionismo políticos inauditos tendo em mente as leis que regem a vida das mulheres nesse pais, e o desrespeito flagrante dos direitos humanos em geral, sem falar no papel da Arábia Saudita na guerra da Síria, enquanto financiador e parte interessada. De resto, a situação da esquerda francesa, e de François Hollande em particular, a um ano das eleições, e com a extrema-direita em plena ascensão, é pouco menos que desesperada. Nas ruas os estudantes e sindicatos organizaram manifestações muito participadas contra diversas medidas políticas nomeadamente a nova proposta de lei do trabalho. O semanário satírico Le Canard Enchaîné destacava em títulos garrafais na primeira página, aquilo que Hollande poderia muito bem ter dito: “ Não se preocupem, em breve também eu estarei, como vocês, na rua…”.
Os irredutíveis europeus começam a afluir bem cedo à sala Gaveau. Vêm muitos de Espanha, muitos de países de leste, vêm de quase todos os países europeus. Segundo os organizadores são 1200 e muitos outros pedidos de inscrição tiveram de ser recusados. A sessão começa com palavras sábias de Jaime Mayor Oreja, figura de referência, quase decano, do movimento pró-vida na Europa. Pausadamente, serenamente, profundamente, fala do beco sem saída para onde caminhámos.
Também Jean-Marie le Méné, o francês que preside à Fundação Jérôme Lejeune, uma importante organização de defesa da vida a todos os níveis em França, dá as boas vindas aos participantes do primeiro Forum One of Us a nível pan-europeu. Outro espanhol, o ex-ministro Alberto Ruiz Gallardon, que se demitiu por não ver cumprida a promessa eleitoral do PP de alteração da lei do aborto, intervém. A ministra húngara da família refere que, no seu país, o deficit demográfico começa a ser menos acentuado e que, depois de anos de ataques à família, nos últimos 10 anos o número de casamentos subiu significativamente e o número anual de divórcios caiu para metade. Segue-se um painel sobre o escândalo de venda de órgãos de fetos abortados nos EUA, implicitamente patrocinado pela ação da milionária Planned Parenthood e… desmascarado mais recentemente por organizações pro-life americanas. Nas filmagens, com câmara oculta, de entrevistas com falsos clientes potenciais, fala-se abertamente da aquisição de órgãos frescos de fetos muito úteis para diversos fins, pulmões, coração, cérebro sobretudo. É um mercado subterrâneo florescente. Se o feto abortado sobreviver será sordidamente utilizado também. A nível mundial, a International Planned Parenthood Federation, co-financiada pela filial americana, promove globalmente o modelo pró-abortivo americano.
Novo painel, novas revelações. O caso da Bélgica, campeão e farol da eutanásia na Europa. Consentimento dos familiares? Impossível, seria uma contradição. Pressão social e médica? Talvez, em muitos casos. Paradoxalmente, está previsto um sistema de monitorização e avaliação à posteriori (?!) no caso de se detetar alguma irregularidade no processo. Os números são de milhares e não poupam nem idosos nem deficientes nem crianças doentes. Nova mudança de tema, barrigas de aluguer, gestation para autrui ou surrogate motherhood. Trata-se agora da comercialização última do ventre materno, alugado, emprestado, vendido. Aqui o filho-objeto pode ter várias mães e vários pais, a dadora de ovócito e o dador de esperma, a mãe de aluguer e o respetivo companheiro, os clientes finais. A seleção da mãe e do pai biológicos, dos pais de aluguer, vai além do imaginável. Análises, raça, características físicas, QI, tudo vale. Trata-se realmente de uma criança à la carte, na melhor tradição eugénica, muito mais sofisticada e elaborada que a raça pura ariana do tempo dos nazis. Aqui um dos escândalos mais conhecidos é o do pequeno Gammy, bébé com trissomia 21 de origem australiana, e cuja gestação se deu no útero de uma tailandesa jovem e pobre, Pattaramon, que se recusou a abortá-lo. De referir que a gestação foi de um par de gêmeos e que, ao invés do contratado, os compradores ficaram com a criança “normal” rejeitando a que tinha trissomia 21, Gammy. Nessa mesma noite, Pattaramon, na presença do marido, receberia na sessão solene o primeiro galardão One of Us de defesa da vida e Pattaramon teve a oportunidade de falar uns minutos, com a ajuda de um tradutor, da vivacidade e boa saúde do seu bébé.
Diversos oradores do mundo das ONGs, da política, também da cultura, ajudaram a assistência a enquadrar todas estas atitudes bárbaras que a nossa civilização e a nossa tecnologia patrocinam. O escritor Juan Manuel de Prada falou da inversão de valores e protagonistas ao longo de décadas. Os defensores da justiça e do humanismo após duas guerras mundiais tornaram-se vozes incómodas e marginalizadas nos tempos atuais e os arautos do moderno eugenismo e dos diversos neo-racismos e esclavagismos são agora vozes destacadas nos media, na política, na sociedade em geral. Phillipe de Villiers, ex-ministro e deputado europeu, foi particularmente contundente: é um tempo novo, de escravatura inaudita, onde não há, e cada vez haverá menos, lugar para os fracos, os doentes, os idosos, e onde haverá cada vez menos crianças. Os pobres, esses, serão aceites pela elite económica enquanto força de trabalho barata, de caráter físico ou intelectual, quase trabalho forçado. Essa força de trabalho pode vir de onde vier. Em França, realizaram-se em média 200 mil abortos todos os anos nas últimas décadas e todos os anos se admitiam em França em torno de 200 mil imigrantes. Não para serem apoiados e valorizados mas para domesticar e subjugar a força de trabalho autóctone. E os que não vieram estarão a trabalhar em condições sub-humanas nos seus países distantes. O trabalhador, a família, o ser humano em geral não é mais do que uma mercadoria e um objeto numa engrenagem montada por grandes potentados económicos e financeiros, dirigidos por homens sem rosto, novos senhores feudais, que a sociedade designou ou aceitou como casta dirigente, segundo Phillipe de Villiers, um político de direita… Ao longo do seu improviso fala de dois vultos da ciência e da cultura que conheceu e que que o impressionaram pela sua luta tenaz contra a decadência civilizacional, um a leste, outro em França, um, Alexandre Soljenitsine, o outro, Jérôme Lejeune. Este último, médico e investigador, co-descobridor das causas do síndrome de Down, à beira de ser laureado Nobel da medicina nos anos 60, foi progressivamente ostracizado pelas suas posições, e as da sua fundação, incondicionalmente pró-vida. Phillipe de Villiers fala efetivamente de um mundo virado do avesso: no parlamento europeu e nos parlamentos nacionais preocupam-se hoje mais com os direitos dos animais que com os do ser humano. Um animal começa a ter personalidade jurídica e direitos intocáveis. O embrião humano e o feto são sujeitos a todo o tipo de manipulações e experiências científicas que as circunstâncias ditarem. No parlamento europeu, diz ele, “Dani le rouge” (o cognome do eurodeputado Daniel Cohn Bendit líder da revolta estudantil francesa de Maio de 68) é hoje mais um defensor do arco-íris do que do vermelho, como muitos outros. E exemplifica: em Estrasburgo, fiz 2 mandatos, um dos meus colegas de bancada era homem no primeiro mandato e mulher no segundo…
O encontro teria ainda várias outras intervenções, particularmente incisivas por parte de oradores dos países de leste, muito representados. A sessão terminaria com a proclamação de princípios da nova Federação Europeia One of Us lida perante a assistência em todas as línguas pelos representantes das diversas delegações nacionais - da parte de Portugal por Isilda Pegado. A noite seria de sarau musical e de gala e oferta do galardão a Pattaramon, a jovem pobre forçada como mãe de aluguer e que, à semelhança dos escravos de Roma, se transformou em mãe-coragem.
Os conferencistas e o batalhão de jovens voluntários da organização deixavam para a posteridade uma foto de família tirada no palco. Terminada a sessão, os participantes abandonavam a sala Gaveau e regressavam às ruas de Paris. Nas montras dos quiosques de jornais, fechados àquela hora, podia ler-se a capa de um hors-série do Le Monde: “Occident: déclin ou métamorphose?”. Perto da Ópera, várias ruas cortadas e policiadas esperavam pela chegada da caravana automóvel do secretário de Estado dos EUA, John Kerry, para preparar, em conjunto com a França e outros países, uma nova ronda de negociações sobre o fim da guerra na Síria. Na televisão, nos noticiários, Hollande anunciava, de forma enfática e convicta, que o acordo com a Turquia sobre os refugiados, e as contrapartidas concedidas ao país, só seriam possíveis se a Turquia demonstrasse um cumprimento exemplar e inequívoco das normas europeias em matéria de direitos humanos.
Na manhã seguinte, no táxi até Orly, o condutor, um asiático na casa dos 50 anos, fala do seu país: o Cambodja. Em 75, após a queda de Saigão no Vietname, os khmer vermelhos de Pol Pot tomaram conta de Phnom Penh. Mataram e massacraram todos os que tinham um mínimo de ligação ao exército, à polícia, os que falavam francês, os comerciantes, os funcionários públicos, famílias inteiras. A mim calhou-me ir trabalhar para um campo de reeducação. Aquela época era mais ou menos como hoje o Estado Islâmico. Viu o filme Killing Fields (Terra Sangrenta em português, La Déchirure em França)? A população do país era de 7 milhões e em 5 anos ficou reduzida a 5 milhões. Teve a sorte de conseguir fugir quando os Vietnamitas invadiram o país e os dirigentes khmer se esconderam na selva. Já em França, diz, um português, Fernandes, foi quem lhe deu a mão, lhe arranjou emprego e lhe ensinou tudo o que sabe hoje.
João Paulo Geada
Economista

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