Estádios de angústia

João César das Neves | DN 20160526

Portugal aproxima-se da quarta fase desta crise, o período mais aflitivo, que antecede imediatamente a solução. A noite é sempre mais negra logo antes da madrugada. A forma como lidarmos com esse desafio será decisiva para o 
futuro.

Em 1969 a psicóloga suíça Elisabeth Kübler-Ross, então a trabalhar nos Estados Unidos, publicou o livro On Death & Dying, hoje clássico. Nessa obra apresentou os famosos cinco estádios emocionais por que passam as pessoas que sofrem um choque grave, como a perda de alguém próximo: negação, raiva, negociação, depressão e aceitação. Adaptando a estrutura, é possível aplicar a lógica às emoções de um povo perante uma situação económica difícil como a nossa.
O luto nacional não resultou da morte de um parente. Após a entrada no mercado único em 1992, e durante década e meia, o país viveu um falso desenvolvimento, que haveria de rebentar com a crise mundial em 2008. Foi então que começou a angústia pela perda da prosperidade ilusória alimentada com dívida externa e os limites que suportamos na nossa soberania devido às responsabilidades com os credores.
A primeira fase após o choque, como diz a teoria psicológica, foi a negação: a vítima não quis acreditar no que aconteceu. Portugal atravessou esse estádio no período final do consulado Sócrates. Durante mais de dois anos os sinais de derrocada financeira foram iludidos com retóricas, programas e outros expedientes. O optimismo revelou-se falacioso e, com o pedido de ajuda à troika em Abril de 2011, iniciou-se o segundo estádio, a raiva, que duraria todo o governo Passos Coelho. Nesses anos a irritação contra a austeridade dominou o sentimento nacional.
Precisamente por se tratar de uma emoção comunitária, não pessoal, as fases são aqui menos definidas. Pode dizer-se que a negação começou logo nos finais do século passado, com o desequilíbrio crescentemente denunciado em relatórios nacionais e internacionais, sempre ignorados pelos sucessivos governos. No outro extremo, essa fase pode dizer-se que continuou mesmo depois de 2011, pois entidades como o Banco Espírito Santo conseguiram manter a ilusão de solidez até 2014. No entanto, e apesar dessas variantes, no que toca à opinião pública são os períodos de 2008 a 2011 e de 2011 a 2015 que correspondem aos dois primeiros estádios.
O governo de António Costa marca bem a terceira fase de angústia, a negociação. Este é o momento em que a vítima tenta manobrar para procurar uma saída airosa para a perda, que no entanto é iniludível. O actual executivo prometeu o fim da austeridade e o regresso das regalias, sem nunca dizer bem onde estão os recursos para isso. É preciso encontrar capital para erguer a banca, investimento para dinamizar o crescimento, cortes para equilibrar o orçamento. Mais cedo ou mais tarde retórica e promessas vão embater nas leis da aritmética, e o tempo se encarregará de despertar os portugueses para a triste carência nacional. Ninguém sabe quanto durará esta fase, mas ela será inevitavelmente seguida pelo quarto estádio, a depressão, quando a dura realidade se impuser.
A dívida é o que é, e as únicas alternativas razoáveis são produzir mais e consumir menos, a chamada austeridade, ou vender património. Sugestões de revolta ou reestruturação dos créditos, aliviando pontualmente a situação, acabam em geral muito caras. Perante o desfalque, os mercados fecham-se, ostracizando o país caloteiro e impedindo o acesso a novo capital; que é precisamente o que mais falta ao país endividado.
Esta fase da depressão, que começará logo que se revelar a ilusão das negociações governamentais, é o período mais perigoso. Desânimo e pessimismo, se forem deixados à solta, transformam-se num problema em si mesmos. Esse é o momento delicado, em que pode ser decisiva a liderança. Quem quer que esteja no poder deve tentar apressar o processo, para chegar o mais depressa possível à quinta e última fase, a aceitação. Só então poderemos com confiança dizer que acabou a crise.
A crise será ultrapassada quando aceitarmos viver com o que temos, ignorarmos exigências irrealistas de interesses e grupos instalados e nos dedicarmos a lidar com os desafios do desenvolvimento na nova economia globalizada. Assumir a inelutabilidade das perdas que o endividamento gerou permitirá também identificar os benefícios que ele deixou. Temos hoje muito melhor qualidade nas infraestruturas do que em 1992, vários sectores promissores, uma sociedade mais exigente e dinâmica. Então termina o luto e começa realmente a recuperação.

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