Os padres, primeiro

Helena Matos
Observador 2016.05.29

Pombal fechou as melhores escolas do país. Afonso Costa fechou-as de novo. Agora voltamos a escolher as piores. Os nossos déspotas esclarecidos caracterizam-se pela promoção iluminada da ignorância.

É dos livros, pelo menos dos nossos livros desde o século XVIII: quando em Portugal o autoritarismo dos que se acreditam iluminados avança, os padres católicos e muito particularmente os seus colégios são um dos primeiros alvos se não mesmo o primeiro.
Foi assim com o Marquês de Pombal e os jesuítas, foi assim com Afonso Costa e os mesmos jesuítas. E está a ser agora com as escolas com contratos de associação, católicas na sua maioria ou na quase totalidade. E só não foi assim durante o PREC porque as escolas privadas em 1975, religiosas ou não, estavam longe, muito longe mesmo, de terem a importância que tinham tido antes e vieram a ter depois: o quadro de professores do Liceu Camões no tempo do reitor Sérvulo Correia rivaliza hoje com o de muitas universidades e é provavelmente irrepetível voltarmos a ver os filhos e netos de grandes empresários, de políticos e das élites nas escolas públicas como sucedia nos anos 60 e 70. Consequentemente no PREC o palco da confrontação com os padres foi não a escola mas sim a Rádio Renascença.
Mas voltemos aos colégios dos padres. Esse recorrente problema nacional apesar da sua reconhecida qualidade. Ou talvez por causa dela. Sublinho que escrevo padres e não Igreja Católica pela simples razão que o alvo são os padres, fulanizados assim mesmo: padres. Estão a vê-los na caricatura do costume? Reaccionários, atrasados, ignorantes? Enfim, quase um endemismo nacional, tipo a cabra do Gerês, que julgamos extinto para sempre tal é a profusão de bispos vermelhos, obviamente ilustradíssimos em que encarna o nosso clero católico, pelo menos mediaticamente falando. Mas enfim volta e meia e ao contrário do que infelizmente aconteceu com a cabra do Gerês, extinta para sempre, o padre, o reaccionaríssimo padre português, companheiro de estroina e de guerrilha do senhor Dom Miguel, renasce das profundezas desta terra e aí está ele no centro de mais uma polémica com o poder.
Entendamo-nos portanto que o assunto é longo e a confusão muita: nada nestas polémicas se prende com a qualidade do ensino ministrado nessas escolas. Aliás de todas as vezes que o Estado e os seus aprendizes de Robespierre entenderam em Portugal reformar o ensino – decisão que logo à partida naquelas cabeças implica atacar os colégios católicos – fizeram-no sempre em nome da qualidade do ensino. De todas as vezes acabámos com pior ensino. Muito pior mesmo. Ou até sem ensino algum por falta de professores e de alunos como aconteceu aquando da celebrada reforma do Marquês de Pombal. Os efeitos devastadores da perseguição aos jesuítas levada a cabo por Pombal traduziram-se, no ensino, numa catástrofe que estaria ao nível do terramoto de 1755, não fosse a paixão que a Maçonaria devota à figura de Pombal. É claro que o marquês contratava excelentes professores no estrangeiro e também é verdade que tratou de mandar equipar os gabinetes e laboratórios com excelentes equipamentos. Mas infelizmente não havia alunos para ouvir os primeiros nem para frequentar os segundos pois, como se percebe ao ler o ensaio de Jorge Buescu “Matemática em Portugal, Uma questão de educação” (edição da Fundação Francisco Manuel dos Santos) expulsos os jesuítas e encerrados os respectivos colégios, deixou de existir quem preparasse os alunos de modo a que estes conseguissem frequentar a universidade: em 1759, nas vésperas da expulsão dos jesuítas, o número estimado de alunos nos colégios secundários destes padres andaria pelos 20.000. Com a expulsão dos jesuítas, estes alunos ficaram anos sem mestres nem escolas, a não ser claro aqueles que tinham nascido numa família abastada que podia contratar tutores privados. Pois se fechar os colégios dos jesuítas fora fácil o mesmo não se pode dizer da decisão de criar uma rede de ensino público. Mas ainda mais difícil que abrir salas de aula era arranjar professores que substituíssem os jesuítas expulsos. Jorge Buescu recupera a descrição feita por Bento de Sousa Farinha, um contemporâneo dessa tentativa pombalina de criar um corpo de docentes a partir do quase nada: os “muito benignos exames” a par dos “benignissimos” avaliadores foram tendo de ser cada vez mais benignos dadas as insuficiências dos “barbeiros, sapateiros, alcaides, escrivães” que pretendiam ser “professores e Mestres” e que acabaram a sê-lo pois não tinham concorrência superior. Conclui Jorge Buescu neste livro que o título diz ser sobre a Matemática em Portugal mas que na verdade é também uma desmontagem sobre os mitos do ensino no nosso país: “Muito dificilmente qualquer destes “mestres” conheceria uma só das duzentas proposições de Euclides representadas nos azulejos com que, meio século antes, os jesuítas ensinavam Matemática no Colégio das Artes.” Com a expulsão dos jesuítas no século XVII, o ensino e o país viveram “um colapso de proporções impressionantes” – foram precisos 150 anos para que o número de alunos inscritos no ensino secundário público atingisse um valor idêntico ao apresentado pelos colégios dos jesuítas em 1759. No ensino universitário o descalabro não foi menor: para lá do encerramento da Universidade de Évora, o número médio de alunos na Universidade de Coimbra caiu a pique, para 5 a 6 vezes menos após a Reforma pombalina.
De todo este processo – todo ele feito em nome da qualidade e do progresso do ensino e ainda hoje incensado enquanto tal – não se retirou lição alguma. E em 1910 os mesmos argumentos voltaram a legitimar os mesmos erros. Mais uma vez se expulsaram os melhores professores do país e se fecharam os seus colégios. Só o mais puro fanatismo pode explicar que se feche, como fechou a I República, um estabelecimento de ensino com a qualidade e a inovação de um estabelecimento como era o Colégio de Campolide, para mais num país onde tanto faltava em matéria de escola.
Ao prescindir por razões religiosas de boa parte dos professores portugueses quer em número quer em qualidade a I República condenou ao fracasso um dos seus grandes objectivos: o combate ao analfabetismo. Afinal e apesar de esta crença estar largamente enraizada em Portugal, os slogans não põem as escolas a funcionar. E é esta mesma crença que agora se abate de novo sobre o ensino em Portugal. Agora já não em nome da necessidade de expurgar o ensino das sotainas mas sim da gestão dos recursos, igualdade, laicidade… Mas mais uma vez um Governo prepara-se para, por razões ideológicas, manter abertas piores escolas e fechar outras reconhecidamente melhores.
É preciso que se tenha em conta que impondo o Estado português, através da escolaridade obrigatória, uma despesa obrigatória e prolongada às famílias, é não só absolutamente justo que esse mesmo Estado custeie essa despesa (tal como custeava o serviço militar obrigatório quando ele existia), como também seria de esperar que incentivasse a escolha das melhores escolas. Mas como bem sabemos não foi isso que aconteceu no passado e não é isso que está a acontecer agora. Acresce para nossa desgraça que ao jacobinismo do costume se juntou agora a questão corporativa: a escola da rede pública é neste momento o palco de uma reocupação de posições pelas corporações da esquerda radical. E portanto não há qualquer vontade de tornar racional a discussão em torno do financiamento e custos das escolas. Apenas existem decisões tomadas antecipadamente que há que embrulhar e justificar.
Desconheço como terminará a presente polémica entre os colégios com contratos de associação e o Governo mas tal como no passado ela ultrapassa em muito a questão dos colégios propriamente ditos: se no passado estivemos perante uma questão de liberdade religiosa agora estamos perante a própria concepção da escola. Estas famílias que agora lutam para manter os filhos naqueles colégios representam algo em que muitos já desistiram de acreditar: a escola enquanto factor de integração e elevador social. Eles sabem que, para o futuro dos seus filhos, a qualidade da escola é determinante. Ora o modelo que actualmente vigora e os interesses das corporações reforçam é um modelo em que a escola acentua as vantagens e as fragilidades do meio em que se nasceu e vive: os mais privilegiados frequentam os colégios sem contrato de associação, os outros vão para a rede pública que arruma os alunos como Darwin as espécies: alguém já alguma vez percebeu os ghettos sociais gerados pelos critérios utilizados nas escolas públicas da idade/morada?
Em resumo e como sempre acontece quando o fanatismo se impõe: o ensino piora; os filhos das élites cada vez irão para colégios mais inacessíveis, muitos deles religiosos, claro… até que um dia, nunca se podendo assumir os erros cometidos, se tenta repará-los de alguma forma. Por isso mais importante que o nome do actual ministro da Educação é o nome de quem lhe vai suceder. Acreditem, se for para fazer diferente vai ter o trabalho mais difícil de Portugal: a 5 de Outubro é território conquistado no mapa das corporações, grémios e lojas. E vai continuar a sê-lo porque, não o esqueçamos, em Portugal, país em que não se consegue encerrar serviço algum, têm-se fechado sistematicamente as melhores escolas. Sempre em nome do ensino, claro. Os padres obviamente são apenas um apontamento nesta História de promoção iluminada da ignorância.

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