Erro crasso na maternidade de substituição

RAFAEL VALE E REIS 20/07/2016 - 07:30
O que pretende o BE com a nova legislação é temerário e contraproducente.

Depois do veto de Marcelo Rebelo de Sousa, o Bloco de Esquerda (BE) vai insistir, na Assembleia da República, nas alterações legislativas que permitirão, em casos excecionais e altruístas, o recurso à maternidade de substituição.
A admissibilidade da maternidade de substituição, a título excecional, é, em geral bem-vinda (a votação da última versão da proposta do BE no hemiciclo demonstra-o) e uma adequada utilização da figura (que será sempre reduzida, tendo em conta a experiência estrangeira) trará, sobretudo, vantagens, pois resolverá casos graves de infertilidade, sem que por cá se possa cair no vórtice mercantilista e de duvidosa dignidade social que atinge, por exemplo, há muitos anos, o recurso às mães de aluguer nos EUA.
Porém, as soluções agora apresentadas - já contando com as alterações motivadas pelas preocupações manifestadas pelo Presidente da República (no veto à primeira versão do projeto) e do Conselho de Ética para as Ciências da Vida - são, pelo menos num ponto, aberrantes. Está em causa a não consagração no projeto do direito ao arrependimento da mãe portadora, ou seja, a impossibilidade de esta revogar o consentimento dado para o procedimento para, assim, poder ficar com a criança que gerou, após o parto. Dito de outra forma: o que está prestes a ser, de novo, aprovado pelo Parlamento é um ataque feroz ao princípio basilar da livre revogabilidade das restrições voluntárias aos direitos de personalidade, que o Código Civil garante há décadas. Se as soluções do BE entrarem em vigor, o casal beneficiário, após o nascimento, poderá, nem que seja à força (utilizando a via judicial) arrancar dos braços da mãe portadora a criança acabada de nascer, como se esta fosse propriedade sua e, portanto, em autêntica execução específica.
No Reino Unido, onde a figura é regulada desde a década de oitenta do século XX, as cautelas são máximas: proíbe-se a maternidade de substituição de natureza comercial, apenas se aceitando a figura num esquema de gratuitidade e mediante autorização judicial que verifique o cumprimento de apertados requisitos. Aí, os membros do casal beneficiário, necessariamente unidos pelo matrimónio, interessados em gerar uma criança com base num acordo de “surrogacy”, podem pedir ao tribunal, nos seis meses seguintes ao nascimento, uma autorização para o seu reconhecimento como progenitores da criança (tecnicamente, devem peticionar uma “parental order”), sem necessidade de recorrer ao procedimento de adoção. O sucesso da sua pretensão depende, para além de outros requisitos formais, da gratuitidade do acordo (admitindo-se, porém, o ressarcimento de despesas razoáveis) e da circunstância de o casal ser geneticamente relacionado com a criança (bastando que um deles seja o dador de um dos gâmetas utilizado). Para além disso, a criança tem de estar já a viver com o casal beneficiário, o que pressupõe a entrega por parte da mãe gestacional, que, assim, tem o direito de se arrepender e recusar a entrega da criança. Acresce que a decisão judicial será favorável se a mãe gestacional der o seu consentimento, que só será válido se prestado, pelo menos, seis semanas após o parto, mesmo nos casos em que ela não contribuiu com o seu material genético. Este regime de ratificação retrospetiva do recurso à maternidade de substituição, pressupõe, pois, que a criança já tenha sido entregue (assim se assegurando não ter havido arrependimento da portadora) e que todos os envolvidos estejam de acordo.
O que pretende o BE com a nova legislação é temerário e contraproducente. Temerário, na medida em que abate alicerces fundamentais do sistema de tutela de direitos fundamentais e de personalidade (criando graves problemas de constitucionalidade que poderão ser convocados no futuro). Contraproducente, ao colocar pressão na decisão de autorização a conceder nos casos concretos de maternidade de substituição: uma vez que não estará em abstrato garantido um nível aceitável de tutela dos interesses da gestante, a tendência será reduzir as autorizações aos casos (raros) que deem garantias absolutas de inexistência de conflitos entre aquela e os membros do casal beneficiário.
Talvez ainda haja tempo para se corrigir o erro crasso.
Docente da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, investigador do Centro de Direito Biomédico

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