A fragilidade das contas públicas

Graça Franco
RR online 26 ago, 2016

Claro que o défice “escondido” continua com “a dívida de fora” (depois da Caixa, onde é que esta irá parar?) mostrando até que ponto a economia nacional não recuperou de nenhuma das suas fragilidades estruturais.

Tomara que dê certo. Mas algo me diz que os milagres são raros em economia e a execução orçamental de Julho tem muito de milagre. Melhorar o défice de forma consistente, repondo os salários da função pública, restituindo a sobretaxa, com o IRS e IRC em queda e consegui-lo com muitíssimo menos crescimento do que o previsto, é obra. Mas, por ironia, aparentemente é o que está a acontecer. António Costa pode ser acusado de ser pouco “socialista”, sobretudo se olharmos o corte do investimento público, mas nunca de ser financeiramente pouco ortodoxo.
Claro que o défice “escondido” continua com “a dívida de fora” (depois da Caixa, onde é que esta irá parar?) mostrando até que ponto a economia nacional não recuperou de nenhuma das suas fragilidades estruturais. Mas as repetidas críticas da oposição não se confirmam e talvez não fosse mau que Passos alterasse o discurso, indo ao encontro da realidade.
Os cortes no investimento público continuam brutais (estava a cair 19% até Junho; e embora se afunde menos, continua a contrair acima dos cinco por cento). Os contractos com a Parque Escolar ou as Estradas de Portugal (emblemáticos da velha gestão socrática) não só não se repetem como encolhem a 70 ou 80 %. Quem ameaçava com o “despesismo” endémico do PS terá de fazer um mea culpa. Mas era mesmo isto que esperavam Jerónimo e Catarina?
Uma das áreas de poupança está, afinal, nas velhas prestações sociais, como os subsídios de desemprego, RSI, etc… Mas a provar que os cortes não são arbitrários surge um inesperado aumento das contribuições para a segurança social acima dos 4%, mostrando um dinamismo do mercado de emprego que, embora acompanhado da descida dos números do desemprego, não encontra suporte noutros indicadores (as ofertas de emprego no IEFP estão em queda acentuada e a economia está basicamente estagnada, apesar do boom do turismo).
A fragilidade da retoma económica está também bem patente na quase estagnação da receita do IVA. E os dados de Julho ainda não dão nota da queda de receita do IVA da restauração, que só se vai notar nos números de Agosto. A receita do mais importante imposto sobe apenas 0,5 por cento, muito menos do que os 3,5 previstos como objectivo anual.
Em contrapartida, os impostos alternativos, como o sobre o tabaco ou sobre veículos, asseguraram só por si uma receita adicional de quase 300 milhões. Ou seja, por si só garantem mais de dois terços da melhoria do défice. Prova-se, assim, que subir fortemente os “pequenos impostos” não é uma estratégia negligenciável e tem custos muito menores do que a velha receita do aumento dos impostos sobre o trabalho ou as pensões.
Noutro indicador indirecto da retoma, os impostos directos, onde já estava prevista uma queda anual de 1,2%, tem estado a ocorrer um verdadeiro afundamento. A receita, que já estava a cair 3,7% em Junho, está agora a reduzir-se 5,2%. Mas também aqui os dados não são taxativos, porque no IRC temos ainda o facto da nova tributação imposta aos fundos e no IRS (que cai quase 6%) e ainda estamos sob o efeito do aumento substancial dos reembolsos.
A prometida redução da despesa na aquisição de bens e serviços está a ser moderadamente cumprida (cai 0,8 % na Administração Central). Mas esta é uma daquelas zonas crípticas, onde as comparações com os anos anteriores é praticamente impossível, tantas são as alterações que ocorrem de um ano para o outro.
Seja como for, as poupanças ocorrem nos suspeitos do costume (defesa, justiça, Administração Interna), nada que garanta que a mão de ferro das Finanças se vai estender às outras áreas de actuação.
Em conjunto, os três ministérios que sofreram cortes da ordem dos 25% não gastaram até Junho muito mais de 300 milhões em aquisições diversas, enquanto no SNS, que gastou em sete meses dez vezes mais (ou seja mais de 3 mil milhões), a aquisição de bens e serviços aumentou 3%.
É também na saúde (onde a contestada política de Paulo Macedo parecia ter posto as contas em ordem) que soam agora mais sinais de alarme. As despesas de pessoal no sector da saúde (que não se restringem às remunerações certas e permanentes) dispararam 7%). Muito acima dos 3,4 registados no total da administração central (2,4% em termos comparáveis face a 2015). O alarme não é indiferente, porque o sector é o segundo maior gastador, logo a seguir à Educação (onde a despesa de pessoal também cresceu ligeiramente acima da média) e os gastos com os salários e outros encargos com Saúde representam praticamente um quarto da despesa de pessoal executada.
Os juros são claramente outro dos factores de maior preocupação. Os encargos líquidos com a dívida pública directa do Estado rondaram até Julho os cinco mil milhões (mais 8,5% do que em 2015). Com empresas públicas ultrapassa esse valor e crescem 7,6%. O défice previsto para a totalidade deste ano não anda longe deste valor, o que mostra bem até que ponto os encargos com a dívida assumem um valor crescentemente insuportável, além de muito vulnerável a qualquer alteração que se registe na chamada confiança dos mercados.
Obcecados com o défice aparentemente “contido”, esquecemos com frequência que factores como a recapitalização da Caixa continuam a engordar a dívida que este ano ficará já seguramente bem acima do previsto.
A melhoria do défice face ao descalabro de 2015 - é bom lembrar - vai manter-se sempre enquanto a receita crescer acima da despesa, mesmo que ambas continuem a crescer bastante abaixo do previsto.
Até em relação ao défice basta que o Eurostat imponha a inclusão dos prejuízos passados da Caixa Geral de Depósitos (mais de mil milhões) para que toda a consolidação volte à estaca zero. É pouco provável que tal aconteça, pelo menos este ano, mas ainda não é garantido. Daí que Mário Centeno tenha afirmado prudentemente que as eventuais implicações da operação CGD são “complexas”, mas tudo fará para que não aconteça. O optimismo de Costa nesta matéria foi claramente exagerado.
Ora, provando que o pior ainda não passou, o problema português está sobretudo na dívida, como lembrava o FMI em Fevereiro. Necessidades de financiamento da ordem dos 18% da nossa riqueza anual são um factor de vulnerabilidade que na Europa só encontra paralelo em Itália. O que nos continua a colocar entre os países mais vulneráveis do mundo à voracidade dos mercados.
Resumindo: as notícias podiam ser piores? Podiam. Mas o facto de serem “menos más” não nos devem distrair do essencial e o essencial é a fragilidade com que a aparente consolidação das contas públicas está a ser conseguida. Não é por acaso que o Tratado europeu impõe a observância de vários indicadores.
Se o PS acabar a não cumprir praticamente nada do seu programa, desistindo do seu modelo alternativo de retoma económica, isso é bom? Não. As contas de Centeno faziam sentido. O programa levado a votos era verdadeiramente alternativo. Esta segunda versão de austeridade “soft” com maior redistribuição de rendimentos não.
Por ironia talvez até consiga cumprir o défice e negociar em Bruxelas com mais à vontade do que os parceiros da antiga coligação. Mas não resolve nada. E sobretudo é caso para perguntar ao PCP e ao BE se estão confortáveis com esta política ou se, pelo contrário, tal como Catarina, se arrependem “todos os dias”. Se assim for a aprovação do Orçamento Rectificativo pode ser um sapo que já não deixa lugar para que se engulam mais (e terão mesmo de ser muitos mais) na preparação do Orçamento para 2017.
A questão sensível da reestruturação do sistema bancário ainda não acabou. Pode mesmo estar apenas a começar. A CGD está obrigada a apresentar dividendos e os gestores que vêm do BPI para a sua nova gestão estão habituados a praticar gestão privada. E é isso que também agora lhes será pedido, com a paz social que caracterizou sempre as reestruturações do BPI. Isso vai sair bastante caro. Tomara que o dinheiro “fresco” chegue para isso e para muito mais, porque só assim se justificará um banco público. Para levar dinheiro à economia com critérios diferentes. Bruxelas vai deixar?

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