Muita coisa ao mesmo tempo

João Taborda da Gama
DN 20160904

Em 1977, Inês conta a história de Suzanne e da sua viagem a Amesterdão para um aborto ilegal. Em 1977, Inês fala no Estádio de San Ciro, em Milão, numa manifestação contra o aborto, perante dezenas de milhares de pessoas. Duas Ineses. Agnès Varda, a realizadora. Anjezë Gonxhe Bojaxhiu, Madre Teresa de Calcutá.
Madre Teresa é ao mesmo tempo muita coisa. Figura frágil e determinada, a escolha pelo cuidado a cada um numa cidade infinita, uma humildade que nunca prescindiu da ribalta, uma compaixão dura, a fé persistente de quem afinal não tinha sempre fé, um sorriso duro.
Agnès Varda também é muita coisa ao mesmo tempo, uma ativista pela legalização do aborto (assinou em 1971 o "Manifesto das 343" em que 343 mulheres admitiam ter feito um aborto, confessando o que então era um crime, e pediam a sua despenalização). Mas no filme de 1977 (Uma Canta, a Outra Não), as coisas não são simples. A maternidade, as crianças, as gravidezes são o tema central (em 1958 tinha feito um documentário sobre a gravidez e a perspetiva de uma grávida). É tudo ambíguo, gradual, aberto. Há fotografias de mulheres grávidas, há grávidas felizes, e o namorado de Susanne, pai da gravidez interrompida (?), suicida-se.
Varda defendia um feminismo moderado, o que lhe valeu muitas críticas, dizia que o movimento precisava também de feministas que quisessem ficar em casa, com filhos. Não alinhou pelo guião do feminismo reinante, radical, andou por isso a vida toda a justificar-se, mas a sua moderação apelou a milhares de mulheres que queriam mais igualdade e mais liberdade. Para Varda, disse isso numa entrevista, não era preciso que todas as feministas se afastassem dos homens, vivendo apenas entre as mulheres.
Mas foi isso mesmo o que fez Madre Teresa, viver apenas entre as mulheres, fundar uma comunidade de mulheres, em que as mulheres mandam. Renunciar a um marido, renunciar a filhos, tudo por uma ideia. Mas não uma ideia apenas, uma ideia feita coisas. Noutra língua - uma carreira. Workaholic, líder, orientada para resultados, sempre a fazer, a desenvolver o seu negócio. Mulher, pequena, passou a vida a ser recebida por gente importante, líderes, papas, empresários - quase sempre homens, altos. Mas era ela quem os tocava, quem lhes dizia o que fazer, que os repreendia em público.
Durante quarenta anos viveu uma crise de fé, a solidão de não ouvir a voz de Deus, sentiu-se sozinha, duvidou. Continuou sempre, no meio da miséria, do cheiro, do calor. No filme de Varda de 1985 Sans Toit, ni Loi (Sem Eira nem Beira), discute-se o compromisso entre liberdade e solidão. Varda queria fazer um filme sobre a liberdade e a sujidão, sobre o cheiro dos vagabundos e os repelidos por ele. Mona, a vagabundeante, fica uns tempos com uma família de criadores de cabras. O homem da casa diz-lhe que escolheu o caminho do meio entre a solidão e a liberdade, e que todos os amigos dele que escolheram a liberdade morreram sozinhos, de solidão. Mona morre no fim, sozinha, na neve.
Lutar contra a morte em abandono foi o que levou Madre Teresa a Nova Iorque nesse mesmo ano de 1985, para abrir um espaço onde os doentes de sida pudessem morrer em paz. Uma casa em Grenwich Village para homens, o bairro gay, o epicentro da epidemia, para aqueles que não eram aceites ou cuidados nos hospitais (civis e religiosos), nas suas famílias, nas suas casas, nas prisões. Em Washington instalou outra casa para doentes terminais com sida apesar da forte e ruidosa oposição dos vizinhos. Não ouviu, não ligou muito à lei. Foi muito controversa, atacada pelos financiamentos que recebeu, pela sua conceção de cuidados terminais, pelo seu radicalismo doutrinal.
Cléo (Cléo das 5 às 7) vive angustiada, hipocondríaca, a câmara acompanha-a das cinco às sete até chegar o resultado médico e saber se tem ou não cancro. Mas ao longo do filme despreocupa-se, está lá o médico que lhe diz que daqui a uns meses está curada, está lá Antoine, que vai para a guerra no dia seguinte. Está lá alguém, é isso que conta. Como Madre Teresa para aqueles nova-iorquinos, para milhões na Índia, no mundo.
Ia muito a Nova Iorque, tinha uma relação especial com a cidade. Giulliani numa homenagem disse que tinha dado tudo o que as Missionárias e Madre Teresa lhe tinham pedido (casas, lugares de estacionamento). John Cardinal O"Connor, arcebispo de Nova Iorque, respondeu-lhe, "como se tivesses tido escolha..." A santa era determinada. O seu motorista, sempre o mesmo, hoje com oitenta e tal anos, conta que um numa das primeiras viagens aos Estados Unidos ficou muito espantada pela forma como os nova-iorquinos deitavam fora mobílias, amontoadas nos passeios. Em Calcutá, aquela madeira daria para aquecer casas, pessoas. Podia ser respigada. Em Os Respigadores e a Respigadora, Varda, inspirada na pintura de Millet, visita os respigadores de hoje, as batatas deixadas para trás porque fogem à medida standard, em forma de coração, muitas delas), comida ainda boa deitada fora nas cidades, objetos que podem ser reciclados, transformados em arte. Varda diz no início do filme que antigamente as respigadoras eram sempre mulheres. Como ela, Agnès, como ela, Anjezë.

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