Vamos ter de mudar quase tudo, mas não queremos mudar nada



JOSÉ MANUEL FERNANDES   02.06.17    OBSERVADOR
Somos um país cada vez mais envelhecido e isso tem e terá imensas consequências no nosso futuro - e também na forma como vivemos a velhice. Mas enquanto houver geringonça ninguém discutirá o problema.
86 anos no caso dos homens, 88 no caso das mulheres. Em 2014-2016 foram essas as idades em que se registaram mais óbitos. No mesmo período duas em três das pessoas que morreram tinham mais de 80 anos. No caso das mulheres foram mesmo três em cada quatro óbitos os que ocorreram depois dos 80 anos.
Habitualmente olhamos para a esperança de vida e celebramos, com razões para celebrar, a extraordinária evolução registada em Portugal. De acordo com um relatório do INE divulgado esta semana, a esperança de vida à nascença era em 2015 de 80,62 anos. Nos últimos dez anos – dez anos que foram quase sempre de crise e de “cortes” que, como sabemos, “destruíram” o nosso Serviço Nacional de Saúde – nunca a esperança de vida deixou de aumentar, sendo hoje 2,44 anos mais elevada do que era há uma década. Em média estamos a ganhar cerca de três meses de esperança de vida por ano.
Mas há um outro dado importante que poucas vezes se refere: a esperança de vida aos 65 anos está agora nos 19,31 anos. Se pensarmos que a idade média das reformas anda nos 63 anos (62,8 no caso dos funcionários públicos em 2016, 63,1 para os restantes trabalhadores em 2015), concluímos que, em média, devemos esperar viver um pouco mais de 22 anos como reformados.
Este número faz-me impressão – e não me impressiona apenas por não saber como iremos financiar tantos anos com tantos portugueses a viverem como pensionistas. Impressiona-me também pelo desperdício que representa. Porventura um desperdício pesado para a economia e doloroso para os próprios.
A regra, nos dias que correm, é usar as reformas antecipadas como forma de reestruturar as empresas. Ou simplesmente de as renovar. Muitas vezes faz-se mesmo a seguinte conta: “Vais três anos para o Fundo de Desemprego e depois já tens idade para te darem a reforma sem cortes”.
Há muitos anos que penso que está quase tudo errado neste raciocínio.
Está errado para as empresas, pois muitos dos trabalhadores que dispensam, mesmo não tendo a criatividade e a energia dos mais novos, possuem uma experiência que lhes faz falta, uma experiência que bem poderia “temperar” toda a frescura e ideias novas trazidas pelos jovens.
Está errado para os próprios, pois a passagem directa da vida activa à vida de reformado é muitas vezes um choque doloroso, uma evolução também desnecessária se pensarmos que hoje, aos 60, aos 65 ou mesmo aos 70 anos se continua a ter boa saúde e se mantém o melhor de muitas capacidades.
E por fim está errado para a economia, pois sabemos que o aumento do contingente de reformados tem evoluído a par com a diminuição de população em idade activa, e essa é uma realidade que não mudaremos por muitas décadas, pois é fruto de tendências demográficas (sobretudo a diminuição do número de nascimentos) que não se podem alterar retroactivamente.
Infelizmente, quando olhamos para esta estado das coisas, quando queremos discuti-lo, por regra nunca saímos do debate em torno dos problemas de financiamento da segurança social. Parece que a única pergunta que faz sentido é “como é que vamos pagar tantas pensões?” ou, mais prosaicamente, “onde é que vamos buscar mais dinheiro?”
Gostaria que o debate pudesse sair desta camisa de forças, onde pouco mais podemos discutir do que a idade da reforma ou se vamos passar a taxar os robots, para passar a um outro debate que me parece mais estimulante: o de criar condições para que a passagem à reforma seja progressiva, isto é, que possa existir um período de transição em que os trabalhadores mais velhos começariam a trabalhar menos horas (ou menos dias) recebendo proporcionalmente menos, e que isso pudesse coexistir com aquilo a que poderíamos chamar “reformas a tempo parcial”.
Muitos dirão: mas então vamos aceitar salários mais baixos no fim da nossa vida activa? De facto nunca foi essa a regra, mas não vejo porque não possa acontecer. Por um lado, para muitos essa é uma fase da vida em que as despesas familiares começam as ser menores; por outro lado, ao aceitar soluções deste tipo estar-se-ia a abrir espaço para que as empresas pudessem contratar trabalhadores mais novos, o que é justo e necessário.
E seríamos capazes de viver com menos rendimentos? Parece difícil, mas é o que já hoje sucede quando se passa à reforma, e a tendência é para que aconteça cada vez mais. Hoje a primeira pensão de reforma corresponde, em média, a pouco mais de 60% do último ordenado, em 2025 estima-se que represente menos de metade e que, lá para 2060, tenha caído para 30% a 40%, conforme tenhamos por referência as estimativas da Comissão Europeia ou as do nosso Ministério da Solidariedade Social.
De novo acho chocante esta evolução. Acho chocante que encolhamos os ombros por aqueles que, trabalhando e descontando, vão pagar as nossas reformas nas próximas quatro décadas – toda uma vida de trabalho – só recebam, no final, o equivalente a metade do que hoje se recebe. E não me parece que este problema se resolva passando a taxar os robots.
Fórmulas que permitissem uma maior margem de liberdade – dos trabalhadores e das empresas – na gestão do processo de passagem da vida activa para a vida de reforma, mecanismos que estimulassem a continuação no mercado de trabalho de tantos que ainda têm tanto a dar à economia (e à sua própria auto-estima), soluções que permitissem optar entre diferentes formas de cálculo da pensão em função desta ser ou não usada como complemento de um corte salarial proporcional à redução do tempo de trabalho, tudo poderia e deveria contribuir para olhar de forma diferente para aquele número de que impressiona – os 22 anos a viver de uma pensão – e que também pesa.
Não era preciso fazer uma grande reforma, toda de uma vez, podia-se testar em alguns sectores ou regiões. Só tinha de se saber em que direcção queríamos ir.
Não tenho porém ilusões. Os tempos que vivemos não são favoráveis a este debate. À esquerda os partidos estão entrincheirados em posições ideológicas rígidas. E à direita tem-se a percepção de que enquanto durar a geringonça não há qualquer possibilidade de falar com o PS sobre um acordo de que este teria de ser sempre parte.
Há muita coisa para mudar. Nalgumas frentes, quase tudo. Mas pressinto que nos tempos mais próximos não quereremos mudar nada, e não apenas por causa do bloqueio político. Na verdade estamos tão habituados a mudar apenas sob pressão que já nem sabemos fazer de outra forma. Pior: falta-nos energia para isso, pois os mais idosos dificilmente serão agentes de mudança e os mais novos têm demasiados problemas hoje para pensarem nos que terão amanhã.

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