Quando o teu coração bater mais forte

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Carta a Pinóquio por Albino Luciani (Papa João Paulo I)


Caro Pinóquio:
Tinha sete anos, quando li pela primeira vez as tuas Aventuras. Não te sei dizer quanto me agradaram e quantas vezes depois as voltei a ler. É que em ti, garoto, me reconhecia a mim mesmo; no teu ambiente, o meu próprio ambiente.
Quantas vezes corrias através do bosque, pelos campos, na praia, pelas estradas! E contigo corriam a Raposa e o Gato, o cão Medoro, os rapazes da batalha dos livros. Pareciam as minhas corridas, os meus companheiros, as estradas e os campos em minha aldeia.
Ias ver as grandes carruagens que chegavam à praça; também eu. Aninhavas-te, torcias a boca, metias a cabeça debaixo dos cobertores antes de tomar o remédio amargo; também eu. A fatia de pão com manteiga dos dois lados; o rebuçado com licor dentro; a “bolinha de açúcar” e, em certas ocasiões, mesmo um ovo, uma pera, até as cascas da pera, representavam uma “meta” radiosa para ti, guloso e cheio de fome; o mesmo sucedia comigo.
Também eu, indo e voltando da escola, vinha envolvido em “batalhas”; à base de bolas de neve na estação invernosa; à base de “caneladas” e coisas semelhantes em todas as estações do ano; “encaixava” um tanto, dava outro tanto, procurando igualar as receitas e as despesas e não choramingar depois em casa, que, se me queixasse, me teriam talvez dado o “resto”!
Agora tu voltaste. Não falaste mais de dentro das páginas do livro, mas na tela da televisão; permaneceste, contudo, o garoto de então.
Eu, pelo contrário, envelheci; encontro-me já, se é lícito falar assim, do outro lado da barricada; já não me reconheço em ti, mas nos teus conselheiros; o pai Gepeto, o Grilo Falante, o Melro, o Papagaio, o Pirilampo, o Caranguejo, a Marmotinha.
Eles tentaram – sem resultado, tirando o caso do Atum – dar-te conselhos para a tua vida de criança.
Eu tento dar-tos para o teu futuro de rapaz e de jovem. Mas olha, não tentes sequer atirar-me o martelo de costume; não estou disposto a ter o mesmo fim do pobre Grilo Falante.
Notaste que não enumerei, entre os “conselheiros”, a Fada? Não me agrada o seu sistema. Perseguido pelos assassinos, tu bates desesperado à porta da sua casa; ela aparece à janela, rosto branco como uma imagem de cera, não te abre a porta e deixa que te enforquem.
É verdade que te liberta mais tarde dos carvalhos, mas depois prega-te a peça de fazer entrar no teu quarto de doente, aqueles quatro coelhos negros como alcatrão, que levam às costas um pequeno caixão.
Não chega. Fugido por milagre do assador do Pescador verde, tu voltas para casa paralisado, que é noite escura e chove à cântaros. A Fada faz-te encontrar a porta fechada e, depois de todo o teu desesperado bater, envia-te o Caracol, que gasta nove horas a descer do quarto andar  e a levar-te – meio morto de fome – um pão de gesso, um frango de cartão, e quatro damascos de alabastro pintados ao natural.
Pois bem, não se procede assim com os rapazes que erram, especialmente se estão chegando ou já chegaram à idade chamada preciosa ou, que é o mesmo, idade difícil, que vai dos 13 aos 16 anos, e que será daqui por diante a tua idade, Pinóquio.
Experimentá-la-ás: idade difícil, quer para ti, quer para os teus educadores. Como já não és garoto, desdenharás, de fato, a companhia, as leituras, os jogos dos pequenos; como ainda não és homem, sentir-te-ás incompreendido e quase repelido pelos adultos.
A braços com a fadiga do crescimento físico rápido, parecer-te-á que te encontras imprevistamente em cima de pernas quilométricas, braços de Briareo e voz estranhamente mudada e inaudita.
Sentirás, prepotente, a necessidade de afirmar o teu eu; por um lado encontrar-te-ás em oposição com o ambiente da família e da escola; e por outro lado entrarás a todo vapor na solidariedade das “tribos”. Por um lado, exiges independência da família; por outro, tens fome e sede de ser aceito pelas pessoas da tua idade e de depender deles.
Quanto medo de ser diferente dos outros! Para onde vai o bando, tu queres ir. Onde o bando pára, tu queres parar. As brincadeiras, a linguagem, os passatempos dos outros, faze-os teus. Aquilo que eles vestem, tu vestes; Num mês, todos os rapazes vão de camiseta e jeans; no mês seguinte, todos usam blusões, calças coloridas, sapatos pretos com atacadores brancos. Em certas coisas, inconformistas; noutras coisas, sem sequer vos dardes conta, conformistas a cem por cento.
E de humor mutável! Hoje, sereno e dócil como eras aos dez anos; amanhã, decidido a tornar-te ator de teatro. Hoje, audaz e despreocupado; amanhã tímido e quase ansioso. Quanta paciência, indulgência, amor e compreensão deverá ter contido o pai Gepeto!
Mas há mais: Tornar-te-ás introspectivo, começarás portanto a olhar dentro de ti mesmo, e descobrirás coisas novas; despertará em ti a melancolia, a necessidade de sonhar de olhos abertos, o sentimento e também o sentimentalismo. Pode acontecer que, já no oitavo ou nono ano de escolaridade, tu sintas o coração bater mais forte, como aconteceu com o jovem David Copperfield, que diz: “Eu adoro Miss Shepherd. É uma menina com um casaquinho curto, um rosto redondo e cabelos encaracolados: na igreja não posso olhar para o meu livro, porque tenho que olhar para Miss Shepherd; coloco Miss Shepherd entre os membros da família real… no meu quarto sou ás vezes levado à exclamar: Oh Miss Shepherd…!” Quereria saber porque ofereço secretamente à Miss Shepherd doze nozes do Brasil? Não são um símbolo de afeto, e no entanto, parece-me que ficam bem com Miss Shepherd. Ofereço também à Miss Shepherd biscoitos moles e insípidos; e inúmeras laranjas… Miss Shepherd é a única visão que pova a minha vida. Como é que aconteceu, após algumas semanas, que eu rompa com ela? Murmura-se que ela prefira o senhorito Jones.. um dia Shepherd faz uma careta ao passar-me ao lado e ri para a colega. Tudo acabou. A devoção de uma vida inteira desapareceu. Miss Shepherd sai das funções religiosas da manhã de domingo, e a família real já não a reconhece!”
Sucedeu à Copperfield, sucede à todos, sucederá também a ti, Pinóquio!
Mas como te assisitirão os “conselheiros”?
Para o fenômeno “crescimento”, o teu novo Grilo Falante deveria ser o velho Vitorino Feltre, um pedagogo que tanto amou os rapazes da tua idade e deu, na educação, enorme importância aos exercícios feitos ao ar livre.
A equitação, a natação, o salto, a esgrima, a caça, a pesca, a corrida, o tiro ao arco, o canto. Ele pretendia – também com estes meios – criar o clima sereno da sua “casa alegre” e dar uma saída útil à exuberância física dos seus jovens alunos. Ele teria dito de boa vontade, como mais tarde disse Parini:
“O que não pode uma alma ousada, se nos teus membros fortes tem vida?”
O teu amigo Atum, depois que no seu dorso te levou são e salvo até a praia, logo que saíste do ventre do tubarão, poder-te-ia ajudar – pacato e persuasivo como é – na próxima crise para a auto-afirmação de que acima falava.
Hoje o vosso sonho de jovens, não é apenas o automóvel; vós sonhais com todo um parque de estacionamento de auto morais: auto-escolha, auto-decisão, auto-governo, autonomia; recentemente, alguns rapazes tentaram até em Bolzano, uma auto-escola com condução própria!
“É justo – dizia na sua pacatez o sábio Atum – chegar à auto-decisão. Mas pouco a pouco; por degrauzinhos. Não se pode passar bruscamente da obediência total de criança à plena autonomia de adulto. Nem se pode empregar hoje, em tudo, o método forte que se usava antes. À medida que cresceres em idade, Pinóquio, crescerá em ti o desejo de autonomia. Pois bem, faz que cresça – com a ajuda externa de bons educadores – a consciência justa dos teus direitos e deveres; cresça o sentido de responsabilidade para usares bem a tão desejada autonomia.
Vê como, há mais de um século, eram educados os irmãos Visconti-Venosta, um, Giovanni, literato, e o outro, Emílio, homem político do nosso Ressurgimento: “Um dos modos de educar do meu pai era o de estar com os seus filhos o mais possível, de exigir de nós uma confiança ilimitada, dando-nos também muita, e de considerar-nos como pessoas um pouco maiores que a nossa idade; assim inspirava em nós o sentimento da responsabilidade e do dever. Éramos tratados como pequenos homens, o que nos lisonjeava bastante; por isso, era grande o nosso empenho em nos mantermos àquele nível.”
Na viagem para a autonomia, como quase todos os jovens pelos 17-20 anos, chocarás também tu, talvez, meu caro Pinóquio, contra uma dura escolha: o problema da fé.
Respirarás, de fato, objeções anti-religiosas, como se respira o ar, na escola, na indústria, no cinema, etc. Se tua fé é um monte de bom trigo, aí estará todo um exército de ratos a tomá-lo de assalto. Se é uma roupa, cem mãos tentarão rasgar-to. Se é uma casa, a picareta querê-la-á desmantelar. pedra a pedra. Será necessário defender-se; hoje da fé, apenas se conserva o que se defende.
Para muitas objeções há uma resposta convincente. Para outras, ainda não foi encontrada uma resposta completa. Que fazer? Não jogue fora a fé! “Dez mil dificuldades – dizia Newman – não formam ainda uma dúvida.”
E tem presente duas coisas. Primeira: Deve ter-se estima por qualquer certeza, ainda que não seja aquela certeza matemática evindentíssima.
Que tenham existido Napoleão, César, Carlos Magno, não é certo como 2+2 = 4, mas é certo como uma certeza humana, histórica. Do mesmo modo é certo ter existido Cristo, que os apóstolos o tenham visto morto e depois ressuscitado.
Segunda: Ao homem é necessário o sentido do mistério. De nada nós sabemos tudo, dizia Pascal. Sei muitas coisas a meu respeito, mas não tudo; não sei, precisamente, o que é a minha vida, a minha inteligência, o grau da minha saúde, etc; como posso pretender compreender e saber tudo de Deus?
As objeções mais frequentes senti-las-ás a respeito da igreja. Talvez te possa ajudar uma anedota referida por Pitigrilli. Em Londres, no Hyde Park, um pregador fala ao ar livre, mas é interrompido de vez em quando por um indivíduo mal penteado e sujo. – Há dois mil anos que existe a igreja – afirma a certa altura o indivíduo – e o mundo está ainda cheio de ladrões, de adultério, de assassinos! – Tens razão – respondeu o pregador – há dois milhões de séculos que há água no mundo, e vede em que estado está o vosso pescoço!
Por outras palavras: houve (e ainda há) maus papas, maus padres, maus católicos, (maus evangélicos, maus pastores, maus crentes, maus cristãos). Mas isto o que significa? Que foi aplicado o evangelho? Não; que pelo contrário, naqueles casos, o evangelho NÃO foi aplicado!
Meu Pinóquio, acerca dos jovens existem duas frases famosas. Recomendo-te a primeira, de Lacordaire: “Tenha uma opinão e a faça valer!” A segunda é de Clemenceau e não te recomendo de modo nenhum: “Não tenha idéias, mas defenda-as com ardor!”
Posso voltar a David Copperfield? A recordação de Miss Shepherd está longe dele há já alguns anos, e ele, já com 17 anos, enamora-se de novo; desta vez, adora a senhorita Larkins. Sente-se feliz ainda que só lhe possa fazer uma reverência durante o dia. Não sente conforto se não vestir as melhores roupas, ou se não andar com os sapatos lustrados. Sonha: “Oh, se amanhã pela manhã o pai Larkins chegasse e me dissesse: A minha filha disse-me tudo. Aqui estão vinte mil libras. Sede felizes!” Sonha com a sua tia que se enternece e bendiz o seu casamento. Mas enquanto ele sonha, a Larkins desposa um cultivador de lúpulo.
Lá ficou David, destroçado durante duas semanas; tira o anel, veste as piores roupas, não usa mais o gel, não engraxa mais os sapatos!
Mais tarde é o relâmpago de entusiasmo com Dora: “Era um ser sobre-humano para mim. Era uma fada, uma sílfide… não sei o que era… tudo aquilo que ninguém jamais viu… fui engolido num abismo de amor num instante apenas.. precipitado, de mergulho,  antes de ter conseguido dizer uma palavra!”
São situações transparentes; através delas, entrevêem-se os problemas do amor e do namoro, para os quais será também necessário que te prepares, caro Pinóquio.
Neste assunto, alguns propõem hoje uma moral largamente permissiva. Embora admitindo que no passado se foi demasiado rígido em certos pontos, os jovens não devem aceitar aquela permissividade; o seu amor deve ser com A maíusculo, belo como uma flor, precioso como uma pérola, e não vulgar como o fundo de um copo.
É oportuno que aceitem impor a si mesmos alguns sacrifícios, e manter-se afastados de pessoas, lugares e divertimentos que são ocasiões de mal para eles. “Não tendes confiança em mim!” dizes tu: “Sim, temos confiança, mas não é desconfiança recordar que todos estamos expostos a tentações; e é amor tirar do teu caminho pelo menos as tentações desnecessárias!
Olha os automobilistas: encontram o guarda, o semáforo, os traços contínuos, o sentido proibido, a interdição de estacionar, tudo coisas que parecem, à primeira vista, aborrecimentos e limitações contra o automobilista; e, pelo contrário, são a favor do automobilista, porque o ajudam a guiar com mais segurança e prazer!”
E se um dia tiveres uma namorada – seja ela Shepherd, Larkins ou Dora – respeita-a! Defende-a contra ti mesmo! Pretendes que ela se guarde intacta para ti? É justo, mas tu faz outro tanto por ela e não ligues a certos amigos, que contam as suas “proezas”, envaidecendo-se e acreditando que são “brilhantes” pelas suas aventuras com mulheres. “Brilhante” e forte é o homem que sabe conquistar-se a si mesmo e se insere na fileira dos jovens, que são a aristocracia das almas. Enquanto se é namorado, o amor deve procurar, não tanto o prazer sensual, quanto a alegria espiritual e sensível, porque manifestada de forma afetuosa, sim,  mas correta e digna.
Conselhos paralelos são dirigidos à outra parte, suposto que ela saiba suportar “prédicas”.
“Cara Dora (ou senhorita Larkins, ou Sheperd) – diz-lhe sua mãe- deixa-me recordar-te uma lei biológica. As moças, habitualmente, têm no que diz respeito ao sexo, maior domínio sobre si relativamente aos rapazes (hoje em dia não sei mais se isso se aplica…). Se o homem é fisicamente mais forte, a mulher é espiritualmente: parece até que Deus tenha decidido fazer depender a bondade dos homens da bondade das mulheres; amanhã dependerão um pouco de ti a alma do marido  e dos filhos; hoje a dos teus amigos e do teu namorado. Deves portanto ter bom senso por dois e saber, em certas coisas, dizer não, ainda que tudo pareça convidar a dizer sim. O próprio namorado, se for bom, nos seus melhores momentos, ser-lhe-á grato e dirá a si mesmo: “A minha Dora tinha razão: ela tem uma consciência e obedece-lhe; amanhã ser-me-á fiel!” Uma namorada muito fácil, pelo contrário, não dá a mesma garantia, e corre o risco de lançar, desde já, com uma concordância demasiado despreocupada, sementes perigosas, de onde nascerão no futuro ciúmes  e suspeitas por parte do marido” (e a recíproca é verdadeira em relação aos homens “fáceis”…).
Aqui concluo, Pinóquio, mas não me digas agora que não era ocasião de falar de Dora. Quando criança, tivestes a Fada, primeiro como irmã e depois mãe. Adolescente e jovem, uma Fada ao teu lado, não pode ser senão uma namorada e uma esposa.
A não ser que te fizesses frade!
Mas não vejo em ti tal vocação!

Albino Luciani – junho de 1972, texto original publicado no livro “Ilustríssimos amigos”. (e aqui, aparecendo com adaptações “modernas”)

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